Romancistas Essenciais - Eça de Queirós

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Из серии: Romancistas Essenciais #2
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O redator da Voz do Distrito, o Agostinho Pinheiro, era ainda seu parente. Chamavam-lhe geralmente o Raquítico, por ter uma forte corcunda no ombro, e uma figurinha enfezada de ético. Era extremamente sujo; e a sua carita de fêmea, amarelada, de olhos depravados, revelava vícios antigos, muito torpes. Tinha feito (dizia-se em Leiria) toda a sorte de maroteira. E ouvira tantas vezes exclamar: Se você não fosse um raquítico, quebrava-lhe os ossos" - que, vendo na sua corcunda uma proteção suficiente, ganhara um descaro sereno. Era de Lisboa, o que o tomava mais suspeito aos burgueses sérios: atribuía-se a sua voz rouca e acre "a faltar-lhe as campainhas": e os seus dedos queimados terminavam em unhas muito compridas - porque tocava guitarra.

A Voz do Distrito fora criada por alguns homens, a quem chamavam em Leiria o grupo da Maia, particularmente hostis ao senhor governador civil. O doutor Godinho, que era o chefe e o candidato do grupo, tinha encontrado em Agostinho, como ele dizia, o homem que se precisa: o que o grupo precisava era um patife com ortografia, sem escrúpulos, que redigisse em linguagem sonora os insultos, as calúnias, as alusões que eles traziam informemente à redação, em apontamentos. Agostinho era um estilista de vilezas. Davam-lhe quinze mil-réis por mês e casa de habitação na redação - um terceiro andar desmantelado numa viela ao pé da Praça.

Agostinho fazia o artigo de fundo, as locais, a Correspondência de Lisboa; e o bacharel Prudêncio escrevia o folhetim literário sob o título de Palestras Leirienses: era um moço muito honrado, a quem o Sr. Agostinho era repulsivo; mas tinha uma tal gula de publicidade, que se sujeitava a sentar-se todos os sábados fraternalmente á mesma banca, a rever as provas da sua prosa - prosa tão florida de imagens, que se murmurava na cidade, ao lê-la: "Que opulência! Que opulência, Jesus!"

João Eduardo reconhecia também que o Agostinho era "um trastezito"; não se atreveria a passear com ele de dia nas ruas; mas gostava de ir para a redação, alta noite, fumar cigarros, ouvir o Agostinho falar de Lisboa, do tempo que lá vivera empregado na redação de dois jornais, no teatro da Rua dos Condes, numa casa de penhores, e em outras instituições. Estas visitas eram segredo!

Àquela hora da noite a sala da tipografia no primeiro andar estava fechada (o jornal tirava-se aos sábados); e João Eduardo encontrava em cima Agostinho abancado com uma velha jaqueta de peles cujos colchetes de prata tinham sido empenhados - ruminando, curvado, à luz dum medonho candeeiro de petróleo, sobre longas tiras de papel: estava fazendo o jornal, e a sala escura em redor tinha o aspecto duma caverna. João Eduardo estirava-se no canapé de palhinha, ou indo buscar a um canto a velha guitarra de Agostinho, repenicava o fado corrido. O jornalista, no entanto, com a testa apoiada a um punho, produzia laboriosamente: "a coisa não lhe saía catita": e como nem o fadinho o inspirava, erguia-se, ia a um armário engolir um copinho de genebra que gargarejava nas fauces estanhadas, espreguiçava-se escancaradamente, acendia o cigarro, e aproveitando o acompanhamento cantarolava roucamente:

Ora foi o fado tirano

Que me levou à má vida,

E a guitarra: dir-lim, dim, dim, dir-lim, dim, dom.

Na vida do negro fado

Ai! que me traz assim perdida...

Isto trazia-lhe sempre as recordações de Lisboa, porque terminava por dizer, com ódio:

— Que pocilga de terra, esta!

Não se podia consolar de viver em Leiria, de não poder beber o seu quartilho na taberna do tio João, à Mouraria, com a Ana Alfaiata ou com o Bigodinho ouvindo o João das Biscas de cigarro ao canto da boca, o olho choroso meio fechado pelo fumo do tabaco, fazer chorar a guitarra dizendo a morte da Sofia!

Depois, para se reconfortar com a certeza do seu talento, lia a João Eduardo os seus artigos, muito alto. E João interessava-se - porque essas "produções", sendo ultimamente sempre "desandas ao clero", correspondiam às suas preocupações.

Era por esse tempo que, em virtude da famosa questão da Misericórdia, o doutor Godinho se tomara muito hostil ao cabido e à padraria. Sempre detestara padres; tinha uma má doença de fígado, e como a Igreja o fazia pensar no cemitério, odiava a sotaina, porque lhe parecia uma ameaça da mortalha. E Agostinho que tinha um profundo depósito de fel a derramar, instigado pelo doutor Godinho, exagerava as suas verrinas: mas, com o seu fraco literário, cobria o vitupério de tão espessas camadas de retórica que, como dizia o cônego Dias, "aquilo era ladrar, não era morder!"

Uma dessas noites João Eduardo encontrou Agostinho todo entusiasmado com um artigo que compusera de tarde, e que lhe "saíra cheio de piadas à Vítor Hugo!"

— Tu verás! Coisa de sensação!

Como sempre, era uma declamação contra o clero e o elogio do doutor Godinho. Depois de celebrar as virtudes do doutor, "esse tão respeitável chefe de família" e a sua eloquência no tribunal que "arrancara tantos desventurados ao cutelo da lei", o artigo, tomando um tom roncante, apostrofava Cristo: - "Quem te diria a ti (bradava Agostinho), ó imortal Crucificado! quem te diria, quando do alto do Gólgota expiravas exangue, quem te diria que um dia, em teu nome, à tua sombra, seria expulso dum estabelecimento de caridade o doutor Godinho, - a alma mais pura, o talento mais robusto..." - E as virtudes do doutor Godinho voltavam, em passo de procissão, solenes e sublimadas, arrastando caudas de adjetivos nobres.

Depois, deixando por um momento de contemplar o doutor Godinho, Agostinho dirigia-se diretamente a Roma: - "É no século XIX que vindes atirar à face de 1,eiria liberal os ditames do Syllabus? Pois bem. Quereis a guerra? Tê-la-eis!"

— Hem, João?! dizia. Está forte! Está filosófico!

E retomando a leitura: - "Quereis a guerra? Tê-la-eis! Levantaremos bem alto o nosso estandarte, que não é o da demagogia, compreendei-o bem! e arvorando-o, com braço firme, no mais alto baluarte das liberdades públicas, gritaremos à face de Leiria, à face da Europa: Filhos do século XIX! às armas! Às armas, pelo progresso!"

— Hem? Está de os enterrar!

João Eduardo, que ficara um momento calado, disse então, levantando as suas expressões em harmonia com a prosa sonora do Agostinho:

— O clero quer-nos arrastar aos funestos tempos do obscurantismo!

Uma frase tão literária surpreendeu o jornalista: fitou João Eduardo, disse:

— Por que não escreves tu alguma coisa, também?

O escrevente respondeu, sorrindo:

— E eu, Agostinho, eu é que te escrevia uma desanda aos padres... E eu tocava-lhes os podres. Eu é que os conheço!...

Agostinho instou logo com ele para que escrevesse a desanda.

— Vem a calhar, menino!

O doutor Godinho ainda na véspera lhe recomendara: - "Em tudo que cheirar a padre, para baixo! Havendo escândalo, conta-se! não havendo, inventa-se!"

E Agostinho acrescentou, com benevolência:

— E não te dê cuidado o estilo, que eu cá o florearei!

— Veremos, veremos, murmurou João Eduardo.

Mas daí por diante Agostinho perguntava-lhe sempre:

— E o artigo, homem? Traz-me o artigo.

Tinha avidez dele, porque sabendo como João Eduardo vivia na intimidade da "panelinha canônica da S. Joaneira", supunha-o no segredo de infâmias especiais.

João Eduardo, porém, hesitava. Se se viesse a saber?

— Qual! afirmava Agostinho. A coisa publica-se como minha. É artigo da redação. Quem diabo vai saber?

Sucedeu na noite seguinte que João Eduardo surpreendeu o padre Amaro resvalando sorrateiramente um segredinho a Amélia - e ao outro dia apareceu de tarde na redação com a palidez de uma noite velada, trazendo cinco largas tiras de papel, miudamente escritas numa letra de cartório. Era o artigo, e intitulava-se: Os modernos fariseus! - Depois de algumas considerações, cheias de flores, sobre Jesus e o Gólgota, o artigo de João Eduardo era, sob alusões tão diáfanas como teias de aranha, um vingativo ataque ao cônego Dias, ao padre Brito, ao padre Amaro e ao padre Natário!... Todos tinham a sua dose, como exclamou cheio de júbilo o Agostinho.

— E quando sai? perguntou João Eduardo.

O Agostinho esfregou as mãos, refletiu, disse:

— É que está forte, diabo! É como se tivesse os nomes próprios! Mas descansa, eu arranjarei.

Foi cautelosamente mostrar o artigo ao doutor Godinho - que o achou "uma catilinária atroz". Entre o doutor Godinho e a Igreja havia apenas um arrufo: ele reconhecia, em geral, a necessidade da religião entre as massas; sua esposa, a bela D. Cândida, era além disso de inclinações devotas, e começava a dizer que aquela guerra do jornal ao clero lhe causava grandes escrúpulos: e o doutor Godinho não queria provocar ódios desnecessários entre os padres, prevendo que o seu amor da paz doméstica, os interesses da ordem e o seu dever de cristão o forçariam bem cedo a uma reconciliação, - "muito contra as suas opiniões, mas..."

Disse por isso a Agostinho secamente:

— Isto não pode ir como artigo da redação, deve aparecer como comunicado. Cumpra estas ordens.

E Agostinho declarou ao escrevente - que a coisa publicava-se como um Comunicado, assinado: Um liberal. Somente João Eduardo terminava o artigo exclamando: - Alerta, mães de família! O Agostinho sugeriu que este final alerta podia dar lugar à réplica jocosa - Alerta está! E depois de largas combinações decidiram-se por este fecho: - Cuidado, sotainas negras!

No domingo seguinte apareceu o comunicado assinado: Um liberal.

Durante toda essa manhã de domingo, o padre Amaro, à volta da Sé, estivera ocupado em compor laboriosamente uma carta a Amélia. Impaciente, como ele dizia, "com aquelas relações que não andavam nem desandavam, que era olhar e apertos de mão e dali não passava" - tinha-lhe dado uma noite, à mesa do quino, um bilhetinho onde escrevera com boa letra, a tinta azul; - Desejo encontrá-la só, porque tenho muito que lhe falar. Onde pode ser sem inconveniente? Deus proteja o nosso afeto. Ela não respondera: - E Amaro despeitado, descontente também por não a ter visto nessa manhã à missa das nove, resolveu "pôr tudo a claro numa carta de sentimento": e preparava os períodos sentidos que lhe deviam ir revolver o coração, passeando pela casa, juncando o chão de pontas de cigarro, a cada momento curvado sobre o Dicionário de Sinônimos.

 

"Ameliazinha do meu coração, (escrevia ele) não posso atinar com as razões maiores que a não deixaram responder ao bilhetinho que lhe dei em casa da senhora sua mamã; pois que era pela muita necessidade que tinha de lhe falar a sós, e as minhas intenções eram puras, e na inocência desta a/ma que tanto lhe quer e que não medita o pecado.

Deve ter compreendido que lhe voto um fervente afeto, e pela sua parte me parece, (se não me enganam esses olhos que são os faróis da minha vida, e como a estrela do navegante) que também tu, minha Ameliazinha, tens inclinação por quem tanto te adora; pois que até outro dia, quando o Libano quinou com os seis primeiros números, e que todos fizeram tanta algazarra, tu apertaste-me a mão por baixo da mesa com tanta ternura, que até me pareceu que o Céu se abria e que eu sentia os anjos entoarem o Hossana! Por que não respondeste pois? Se pensas que o nosso afeto pode ser desagradável aos nossos anjos da guarda, então te direi que maior pecado cometes trazendo-me nesta incerteza e tortura, que até na celebração da missa estou sempre com o pensar em ti, e nem me deixa elevar a minha a/ma no divino sacrifício. Se eu visse que este mútuo afeto era obra do tentador, eu mesmo te diria: oh, minha bem amada filha, façamos o sacrifício a Jesus, para lhe pagar parte do sangue que derramou por nós! Mas eu tenho interrogado a minha a/ma e vejo nela a brancura dos lírios. E o teu amor também é puro como a tua a/ma, que um dia se unirá à minha, entre os coros celestes, na bem-aventurança. Se tu soubesses como eu te quero, querida Ameliazinha, que até às vezes me parece que te podia comer aos bocadinhos! Responde pois e dize se não te parece que poderia arranjar-se a vermo-nos no Morena/, pela tarde. Pois eu anseio por te exprimir todo o fogo que me abrasa, bem como falar-te de coisas importantes, e sentir na minha mão a tua que eu desejo que me guie pelo caminho do amor, até aos êxtases duma felicidade celestial. Adeus, anjo feiticeiro, recebe a oferta do coração do teu amante e pai espiritual,

Amaro."

Depois de jantar copiou esta carta a tinta azul, e com ela bem dobrada no bolso da batina foi à Rua da Misericórdia. Logo da escada sentiu em cima a voz aguda de Natário, discutindo.

— Quem está por cá? - perguntou à Ruça, que alumiava, encolhida no seu xale.

—.As senhoras todas. Está o Sr, padre Brito.

— Olá! Bela sociedade!

Galgou os degraus, e à porta da sala, com o seu capote ainda pelos ombros, tirando alto o chapéu:

— Muito boas noites a todos, começando pelas senhoras.

Natário, imediatamente, plantou-se diante dele e exclamou:

— Então que lhe parece?

— O quê? perguntou Amaro. E reparando no silêncio, nos olhos cravados nele: - O que é? Alguma coisa de novo?

— Pois não leu, senhor pároco? exclamaram. Não leu o Di strito!?

Era papel em que ele não pusera os olhos, disse. Então as senhoras indignadas romperam:

— Ai! é um desaforo!

— Ai! é um escândalo, senhor pároco!

Natário com as mãos enterradas nas algibeiras contemplava o pároco com um sorrizinho sarcástico, saltando dentre os dentes:

— Não leu! Não leu! Então que fez?

Amaro reparava, já aterrado, na palidez de Amélia, nos seus olhos muito vermelhos. E enfim o cônego erguendo-se pesadamente:

— Amigo pároco, dão-nos uma desanda...

— Ora essa! exclamou Amaro.

— Tesa!

O senhor cônego, que trouxera o jornal, devia ler alto - lembraram.

— Leia, Dias, leia, acudiu Natário. Leia, para saborearmos!

A S. Joaneira deu mais luz ao candeeiro: o cônego Dias acomodou- se à mesa, desdobrou o jornal, pôs os óculos cuidadosamente, e, com o lenço do rapé nos joelhos, começou a leitura do Comunicado na sua voz pachorrenta.

O princípio não interessava: eram períodos enternecidos em que o liberal exprobrava aos fariseus a crucificação de Jesus: - "Por que o matásteis? (exclamava ele). Respondei!" E os fariseus respondiam: - "Matamo-lo porque ele era a liberdade, a emancipação, a aurora de uma nova era", etc. O liberal então esboçava, a largos traços, a noite do Calvário: - "Ei-lo pendente da cruz, traspassado de lanças, a sua túnica jogada aos dados, a plebe infrene", etc. E, voltando a dirigir-se aos fariseus infelizes, o liberal gritava-lhes com ironia: - " Contemplai a vossa bela obra!" Depois, por uma gradação hábil, o liberal descia de Jerusalém a Leiria: - "Mas pensam os leitores que os fariseus morreram? Como se enganam! Vivem! conhecemo-los nós; Leiria está cheia deles, e vamos apresentá-los aos leitores..."

— Agora é que elas começam, disse o cônego olhando para todos em redor, por cima dos óculos.

Com efeito "elas começavam"; era, numa forma brutal, uma galeria de fotografias eclesiásticas: a primeira era a do padre Brito: - "Vede-o, (exclamava o liberal) grosso como um touro, montado na sua égua castanha..."

— Até a cor da égua! murmurou com uma indignação piedosa a Sra. D. Maria da Assunção.

"... Estúpido como um melão, sem sequer saber latim..."

O padre Amaro, assombrado, fazia: Oh! oh! E o padre Brito, escarlate, mexia-se na cadeira, esfregando devagar os joelhos.

"... Espécie de caceteiro", continuava o cônego, que lia aquelas frases cruéis com uma tranquilidade doce, "desabrido de maneiras, mas que não desgosta de se dar à ternura, e, segundo dizem os bem informados, escolheu para Dulcinéia a própria e legítima esposa do seu regedor..."

O padre Brito não se dominou:

— Eu racho-o de meio a meio! exclamou erguendo-se e recaindo pesadamente na cadeira.

— Escute, homem, disse Natário.

— Qual escute! O que é, é que o racho!

Mas se ele não sabia quem era o liberal!

— Qual liberal! Quem eu racho é o doutor Godinho. O doutor Godinho é que é o dono do jornal. O doutor Godinho é que eu racho!

A sua voz tinha tons roucos: e atirava furioso grandes palmadas à coxa.

Lembraram-lhe o dever cristão de perdoar as injúrias! A S. Joaneira com unção citou a bofetada que Jesus Cristo suportou. Devia imitar Cristo.

— Qual Cristo, qual cabaça! gritou Brito apoplético.

Aquela impiedade criou um terror.

— Credo! Sr, padre Brito, credo! exclamou a irmã do cônego, recuando a cadeira.

O Libaninho, com as mãos na cabeça, vergado sob o desastre, murmurava:

— Nossa Senhora das Dores, que até pode cair um raio!

E, vendo mesmo Amélia indignada, o padre Amaro disse gravemente:

— Brito, realmente você excedeu-se.

— Pois se estão a puxar por mim!...

— Homem, ninguém puxou por você, disse severamente Amaro. E com um tom pedagogo: - Apenas lhe lembrarei, como devo, que em tais casos, quando se diz a blasfêmia má, o reverendo padre Scomelli recomenda confissão geral e dois dias de recolhimento a pão e água.

O padre Brito resmungava.

— Bem, bem, resumiu Natário. O Brito cometeu uma grande falta, mas saberá pedir perdão a Deus, e a misericórdia de Deus é infinita!

Houve uma pausa comovida, em que se ouviu a Sra. D. Maria da Assunção murmurar "que ficara sem pinga de sangue": e o cônego, que durante a catástrofe pousara os óculos sobre a mesa, retomou-os, e continuou serenamente a leitura:

"...Conheceis um outro com cara de furão?..."

Olhares de lado fixaram o padre Natário.

"...Desconfiai dele: se puder trair-vos, não hesita; se puder prejudicar-vos, folga; as suas intrigas trazem o cabido numa confusão porque é a víbora mais daninha da diocese, mas com tudo isso muito dado à jardinagem, porque cultiva com cuidado duas rosas do seu canteiro."

— Homem, essa! exclamou Amaro.

— É para que você veja, disse Natário erguendo-se lívido. Que lhe parece? Você sabe que eu, quando falo das minhas sobrinhas, costumo dizer as duas rosas do meu canteiro. É um gracejo. Pois, senhores, até vem com isto! - E com um sorriso macilento, de fel: - Mas amanhã hei-de saber quem é! Olaré! Eu hei-de saber quem é!

— Deite ao desprezo, Sr. padre Natário, deite ao desprezo, disse a S. Joaneira pacificadora.

— Obrigado, minha senhora, acudiu Natário curvando-se com uma ironia rancorosa, obrigado! Cá recebi!

Mas a voz imperturbável do cônego retomara a leitura. Agora era o retrato dele, traçado com ódio:

"...Cônego bojudo e glutão, antigo caceteiro do Sr. D. Miguel, que foi expulso da freguesia de Ourém, outrora mestre de Moral num seminário e hoje mestre de imoralidade em Leiria..."

— Isso é infame! exclamou Amaro exaltado.

O cônego pousou o jornal, e com a voz pachorrenta:

— Você pensa que me dá isto cuidado? disse ele. Boa! Tenho que comer e que beber, graças a Deus! Deixar rosnar quem rosna!

— Não, mano, interrompeu a irmã, mas a gente sempre tem o seu bocadinho de brio!

— ora, mana! replicou o cônego Dias com um azedume de raiva concentrada. Ora, mana! ninguém lhe pede a sua opinião!

— Nem preciso que ma peçam, gritou ela empertigando-se. Sei-a dar muito bem quando quero e como quero. Se não tem vergonha, tenho-a eu!

— Então! então! disseram em roda, acalmando-a.

— Menos língua, mana, menos língua! disse o cônego fechando os seus óculos. Olhe, não lhe caiam os dentes postiços!

— Seu malcriado!

Ia falar, mas sufocou-se; e começou subitamente a soltar ais.

Recearam logo que lhe desse o flato; a S. Joaneira e a D. Joaquina Gansoso levaram-na para o quarto, embaixo, amparando-a, com palavras brandas:

— Estás doida! Por quem és, filha! Olha que escândalo! Nossa Senhora te valha!

Amélia mandava buscar água de flor de laranja.

— Deixe-a lá, rosnou o cônego, deixe-a lá! Aquilo passa-lhe. São calores!

Amélia deu um olhar triste ao padre Amaro, e desceu ao quarto com a Sra. D. Maria da Assunção e a Gansoso surda, que iam também "sossegar a D. Josefa, coitadita!" Os padres agora estavam sós e o cônego voltando-se para Amaro: - Ouça você, que é a sua vez - disse retomando o jornal.

— E verá que dose! disse Natário.

O cônego escarrou, aproximou mais o candeeiro, e declamou:

"... Mas o perigo são certos padres novos e ajanotados, párocos por influências de condes da capital, vivendo na intimidade das famílias de bem onde há donzelas inexperientes, e aproveitando-se da influência do seu sagrado ministério para lançar na alma da inocente a semente de chamas criminosas!"

— Pouca vergonha! murmurou Amaro lívido.

"... Dize, sacerdote de Cristo, onde queres arrastar a impoluta virgem? Queres arrastá-la aos lodaçais do vício? Que vens fazer aqui ao seio desta respeitável família? Por que rondas em volta da tua presa, como o milhafre em torno da inocente pomba? Para trás, sacrílego! Murmuras-lhe sedutoras frases, para a desviares do caminho da honra; condenas á desgraça e á viuvez algum honrado moço que lhe queira oferecer a sua mão trabalhadora; e vais-lhe preparando um horroroso futuro de lágrimas. E tudo para quê? Para saciares os torpes impulsos da tua criminosa lascívia..."

— Que infame! rosnou com os dentes cerrados o padre Amaro.

"...Mas acautela-te, presbítero perverso!" E a voz do cônego tinha tons cavos ao soltar aquelas apóstrofes. "Já o arcanjo levanta a espada da justiça. E sobre ti, e teus cúmplices, já a opinião da ilustrada Leiria fita seu olho imparcial. E nós cá estamos, nós, filhos do trabalho, para vos marcar na fronte o estigma da infâmia. Tremei, sectários do Syllabus! cuidado, sotainas negras!"

— De escacha! fez o cônego suado, dobrando a Voz do Distrito.

O padre Amaro tinha os olhos enevoados de duas lágrimas de raiva: passou devagar o lenço pela testa, soprou, disse com os beiços a tremer:

— Eu, colegas, nem sei o que hei-de dizer! Pelo Deus que me ouve, isto é a calúnia das calúnias.

 

— Uma calúnia infame... rosnaram.

— E a mim, o que me parece, continuou Amaro, é que nos dirijamos à autoridade!

— É o que eu tinha dito, acudiu Natário, é necessário falar ao secretário-geral...

— Um cacete é que é! rugiu o padre Brito. Autoridade! O que é, é rachá-lo! Eu bebia-lhe o sangue!...

O cônego, que meditava coçando o queixo, disse então:

— E você, Natário, é que deve ir ao secretário-geral. Você tem língua, tem lógica...

— Se os colegas decidem, disse Natário curvando-se, vou. E hei-de- lhas cantar, à autoridade!

Amaro ficara junto da mesa com a cabeça entre as mãos, aniquilado. E o Libaninho murmurava:

— Ai, filhos, eu não é nada comigo, mas só de ouvir todo esse aranzel, até se me estão a vergar as pernas. Ai, filhos, um desgosto assim...

Mas sentiram a voz da Sra. Joaquina Gansoso subindo a escada; e o cônego imediatamente com uma voz prudente:

— Colegas, o melhor, diante das senhoras, é não se falar mais nisto. Bem basta o que basta.

Daí a momentos, apenas Amélia entrou, Amaro ergueu-se, declarou que estava com uma forte dor de cabeça, e despediu-se das senhoras.

— E sem tomar chá? acudiu a S. Joaneira.

— Sim, minha senhora, disse ele embrulhando-se no seu capote, não me estou a sentir bem. Boas noites... E você, Natário, apareça amanhã pela Sé à uma hora.

Apertou a mão de Amélia, que se lhe abandonou entre os dedos passiva e mole, - e saiu com os ombros vergados.

A S. Joaneira notou, desconsolada:

— O senhor pároco ia muito pálido...

O cônego levantou-se, e com um tom impaciente e quezilado:

— Se ia pálido, amanhã estará corado. E agora quero dizer uma coisa. Esse aranzel do jornal é a calúnia das calúnias! Eu não sei quem o escreveu, nem para que o escreveu. Mas são tolices e são infâmias. É pateta e maroto, quem quer que seja. O que devemos fazer já o sabemos, e como já se tagarelou bastante sobre o caso, a senhora mande vir o chá. E o que lá vai, lá vai, não se fala mais na questão.

As faces em roda continuavam contristadas. - E então o cônego acrescentou:

— Ah! e quero dizer outra coisa: como não morreu ninguém, não há necessidade de estar aqui com cara de pêsames. E tu, pequena, senta- te ao instrumento e repenica-me essa Chiquita!

O secretário-geral, o Sr. Gouveia Ledesma, antigo jornalista, e, em anos mais expansivos, autor do livro sentimental Devaneios de um Sonhador, estava então dirigindo o distrito na ausência do governador civil.

Era um moço bacharel que passava por ter talento. Representara de galã no teatro acadêmico, em Coimbra, com muito aplauso; e tomara a esse tempo o hábito de passear à tarde na Sofia, com o ar fatal com que no palco arrepelava os cabelos, ou levava, nos transes de amor, o lenço aos olhos. Depois em Lisboa arruinara um pequeno patrimônio com o amor de Lolas e de Carmens, ceias no Mata, muita caça no Xafredo e perniciosas convivências literárias: aos trinta anos estava pobre, saturado de mercúrio e autor de vinte folhetins românticos na Civilização: mas tornara- se tão popular, que era conhecido nos lupanares e nos cafés por um cognome carinhoso - era o Bibi. Julgando então que conhecia a fundo a existência, deixou crescer as suíças, começou a citar Bastiat, frequentou as câmaras e entrou na carreira administrativa; chamava agora à república que tanto exaltara em Coimbra uma absurda quimera; e Bibi era um pilar das instituições.

Detestava Leiria, onde passava por espirituoso; e dizia às senhoras, nas soirées do deputado Novais - "que estava cansado da vida". Rosnava- se que a esposa do bom Novais andava doida por ele: e em verdade Bibi escrevera a um amigo da capital: - "enquanto a conquistas, pouco por ora; tenho apenas no papo a Novaisitos".

Levantava-se tarde; e nessa manhã, de robe-de-chambre à mesa do almoço, partia os seus ovos quentes, lendo com saudade no jornal a narração apaixonada duma pateada em S. Carlos, quando o criado, - um galego que trouxera de Lisboa - veio dizer que "estava ali um cura".

— Um cura? Que entre para aqui! - E murmurou para sua satisfação pessoal: - o Estado não deve fazer esperar a Igreja.

Ergueu-se, e estendeu as duas mãos ao padre Natário que entrava, muito composto, na sua longa batina de lustrina.

— Uma cadeira, Trindade! Toma uma chávena de chá, senhor cura? Soberba manhã, hem? Estava justamente pensando em si, - isto é, estava pensando no clero em geral... Acabava de ler as peregrinações que se estão fazendo a Nossa Senhora de Lourdes... Grande exemplo! Milhares de pessoas da melhor roda... É realmente consolador ver renascer a fé... Ainda ontem eu disse em casa do Novais: "No fim de tudo a fé é a mola real da sociedade". Tome uma chávena de chá... Ah! é um grande bálsamo!...

— Não, obrigado, almocei já.

— Mas não! Quando digo um grande bálsamo refiro-me à fé, não ao chá! Ah! ah! É boa, não?

E prolongou a sua risadinha com complacência. Queria agradar a Natário, pelo princípio que repetia muito, com um sorriso astuto - "que quem está metido na política deve ter por si a padraria".

— E depois, acrescentou, como eu dizia ontem em casa do Novais, que vantagem para as localidades! Lourdes, por exemplo, era uma aldeola; pois com a afluência dos devotos está uma cidade... Grandes hotéis, bulevares, belas lojas... É por assim dizer o desenvolvimento econômico, correndo parelhas com o renascimento religioso.

E deu com satisfação um puxãozinho grave ao colarinho.

— Pois eu vinha aqui falar a V. Ex.a a respeito dum comunicado na Voz do Distrito.

— Ah! interrompeu o secretário-geral, perfeitamente, li! Uma famosa verrina... Mas literariamente, como estilo e como imagens, que miséria!

— E que tenciona V. Ex.a fazer, senhor secretário-geral?

O Sr. Gouveia Ledesma apoiou-se nas costas da cadeira, perguntou pasmado:

— Eu?

Natário disse, destilando as palavras:

— A autoridade tem o dever de proteger a religião do Estado, e implicitamente os seus sacerdotes... Que tenha V. Ex.a em vista, eu não venho aqui em nome do clero...

E acrescentou com a mão sobre o peito:

— Sou apenas um pobre padre sem influência... Venho, como particular, perguntar ao senhor secretário-geral se se pode permitir que caracteres respeitáveis da Igreja diocesana sejam assim difamados...

— É certamente lamentável que um jornal...

Natário interrompeu, empertigando o busto com indignação:

— Jornal que já devia estar suspenso, senhor secretário-geral!

— Suspenso! Por quem é, senhor cura! Mas V. St decerto não quer que eu volte ao tempo dos corredores-mores! - Suspender o jornal! Mas a liberdade de imprensa é um princípio sagrado! Nem as leis de imprensa o permitem... Mesmo querelar pelo ministério público porque um periódico diz duas ou três pilhérias sobre o cabido, impossível! Tínhamos de querelar toda a imprensa de Portugal, com exceção da Nação e do Bem Público! Onde iria parar a liberdade de pensamento, trinta anos de progresso, a própria idéia governamental? Mas nós não somos os Cabrais, meu caro senhor! Nós queremos luz, muitíssima luz! Justamente o que nós queremos é luz!

Natário tossiu devagarinho, disse:

— Perfeitamente. Mas então quando pelas eleições, a autoridade nos vier pedir o nosso auxilio, nós vendo que não encontramos nela proteção, diremos simplesmente: "Non possumus!"

— E pensa o senhor cura, que por amor de alguns votos que dão os senhores abades, nós vamos trair a civilização?

E o antigo Bibi, tomando uma grande atitude, soltou esta frase:

— Somos filhos da liberdade, não renegaremos nossa mãe!

— Mas o doutor Godinho, que é a alma do jornal, é oposição, observou então Natário; proteger-lhe o jornal é implicitamente proteger-lhe as manobras...

O secretário-geral teve um sorriso:

— Meu caro senhor cura, V. St não está no segredo da política. Entre o doutor Godinho e o governo civil não há inimizade, há apenas um arrufo... O doutor Godinho é uma inteligência... Vai reconhecendo que o grupo da Maia não produz nada... O doutor Godinho aprecia a política do governo, e o governo aprecia o doutor Godinho.

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