Romancistas Essenciais - Eça de Queirós

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Из серии: Romancistas Essenciais #2
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Amaro não desejava nada:

— Eu nem sei, dizia ele melancolicamente.

No entretanto, escutando por simpatia aqueles para quem o seminário era o "tempo das galés", saia muito perturbado daquelas conversas cheias de impaciente ambição da vida livre. Às vezes falavam de fugir. Faziam planos, calculando a altura das janelas, as peripécias da noite negra pelos negros caminhos: anteviam balcões de tabernas onde se bebe, salas de bilhar, alcovas quentes de mulheres. Amaro ficava todo nervoso: sobre o seu catre, alta noite, revolvia-se sem dormir, e, no fundo das suas imaginações e dos seus sonhos, ardia como uma brasa silenciosa o desejo da Mulher.

Na sua cela havia uma imagem da Virgem coroada de estrelas, pousada sobre a esfera, com o olhar errante pela luz imortal, calcando aos pés a serpente. Amaro voltava-se para ela como para um refúgio, rezava-lhe a Salve-Rainha: mas, ficando a contemplar a litografia, esquecia a santidade da Virgem, via apenas diante de si uma linda moça loura; amava-a; suspirava, despindo-se olhava-a de revés lubricamente; e mesmo a sua curiosidade ousava erguer as pregas castas da túnica azul da imagem e supor formas, redondezas, uma carne branca... Julgava então ver os olhos do Tentador luzir na escuridão do quarto; aspergia a cama de água benta; mas não se atrevia a revelar estes delírios, no confessionário, ao domingo.

Quantas vezes ouvira, nas prédicas, o mestre de Moral falar, com a sua voz roufenha, do Pecado, compará-lo à serpente e com palavras untuosas e gestos arqueados, deixando cair vagarosamente a pompa melíflua dos seus períodos, aconselhar os seminaristas a que, imitando a Virgem, calcassem aos pés a serpente ominosa! E depois era o mestre de Teologia mística que falava, sorvendo o seu rapé, no dever de vencer a Natureza! E citando S. João de Damasco e S. Crisólogo, S. Cipriano e S. Jerônimo, explicava os anátemas dos santos contra a Mulher, a quem chamava, segundo as expressões da Igreja, Serpente, Dardo, Filha da Mentira, Porta do Inferno, Cabeça do Crime, Escorpião...

— E como disse o nosso padre S. Jerônimo — e assoava-se estrondosamente — Caminho de iniqüidade, iniquita via!

Até nos compêndios encontrava a preocupação da Mulher! Que ser era esse, pois, que através de toda a teologia ora era colocada sobre o altar como a Rainha da Graça, ora amaldiçoada com apóstrofes bárbaras? Que poder era o seu, que a legião dos santos ora se arremessa ao seu encontro, numa paixão extática, dando-lhe por aclamação o profundo reino dos Céus, — ora vai fugindo diante dela como do Universal Inimigo, com soluços de terror e gritos de ódio, e escondendo-se, para a não ver, nas tebaidas e nos claustros, vai ali morrendo do mal de a ter amado? Sentia, sem as definir, estas perturbações: elas renasciam, desmoralizavam-no perpetuamente: e já antes de fazer os seus votos desfalecia no desejo de os quebrar.

E em redor dele, sentia iguais rebeliões da natureza: os estudos, os jejuns, as penitências podiam domar o corpo, dar-lhe hábitos maquinais, mas dentro os desejos moviam-se silenciosamente, como num ninho serpentes imperturbadas. Os que mais sofriam eram os sangüíneos, tão doloridamente apertados na Regra como os seus grossos pulsos plebeus nos punhos das camisas. Assim, quando estavam sós, o temperamento irrompia: lutavam, faziam forças, provocavam desordens. Nos linfáticos a natureza comprimida produzia as grandes tristezas, os silêncios moles: desforravam-se então no amor dos pequenos vícios: jogar com um velho baralho, ler um romance, obter de intrigas demoradas um maço de cigarros — quantos encantos do pecado!

Amaro por fim quase invejava os estudiosos; ao menos esses estavam contentes, estudavam perpetuamente, escrevinhavam notas no silêncio da alta livraria, eram respeitados, usavam óculos, tomavam rapé. Ele mesmo tinha às vezes ambições repentinas de ciência; mas diante dos vastos infolios vinha-lhe um tédio insuperável. Era no entanto devoto: rezava, tinha fé ilimitada em certos santos, um terror angustioso de Deus. Mas odiava a clausura do seminário! A capela, os chorões do pátio, as comidas monótonas do longo refeitório lajeado, os cheiros dos corredores, tudo lhe dava uma tristeza irritada: parecia-lhe que seria bom, puro, crente, se estivesse na liberdade duma rua ou na paz dum quintal, fora daquelas negras paredes. Emagrecia, tinha suores éticos: e mesmo no último ano, depois do serviço pesado da Semana Santa, como começavam os calores, entrou na enfermaria com uma febre nervosa.

Ordenou-se enfim pelas têmporas de S. Mateus; e pouco tempo depois recebeu, ainda no seminário, esta carta do Sr. padre Liset:

{{d|"Meu querido filho e novo colega.— Agora que está ordenado, entendo em minha consciência que devo dar-lhe conta do estado dos seus negócios, pois quero cumprir até o fim o encargo com que carregou os meus ombros débeis a nossa chorada marquesa, atribuindo-me a honra de administrar o legado que lhe deixou. Porque, ainda que os bens mundanos pouco devam importar a uma alma votada ao sacerdócio, são sempre as boas contas que fazem os bons amigos. Saberá, pois, meu querido filho, que o legado da querida marquesa — para quem deve erguer em sua alma uma gratidão eterna — está inteiramente exausto. Aproveito esta ocasião para lhe dizer que depois da morte de seu tio, sua tia, tendo liquidado o estabeleci mento, se entregou a um caminho que o respeito me impede de qualificar: caiu sob o império das paixões, e tendo-se ligado ilegitimamente, viu os seus bens perdidos juntamente com a sua pureza, e hoje estabeleceu uma casa de hóspedes na Rua dos Calafates n? 53. Se toco nestas impurezas, tão impróprias de que um tenro levita, como o meu querido filho, tenha delas conhecimento, é porque lhe quero dar cabal relação da sua respeitável família. Sua irmã, como decerto sabe, casou rica em Coimbra, e ainda que no casamento não é o ouro que devemos apreciar, é todavia importante, para futuras circunstâncias, que o meu querido filho esteja de posse deste fato. Do que me escreveu o nosso querido reitor a respeito de o mandarmos para a freguesia de Feirão, na Gralheira, vou falar com algumas pessoas importantes que têm a extrema bondade de atender um pobre padre que só pede a Deus misericórdia. Espero, todavia, conseguir. Persevere, meu querido filho, nos caminhos da virtude, de que sei que a sua boa alma está repleta, e creia que se encontra a felicidade neste nosso santo ministério quando sabemos compreender quantos são os bálsamos que derrama no peito e quantos os refrigérios que dá — o serviço de Deus.' Adeus, meu querido filho e novo colega. Creia que sempre o meu pensamento estará com o pupilo da nossa chorada marquesa, que decerto do Céu, onde a elevaram as suas virtudes, suplica à Virgem, que ela tanto serviu e amou, a felicidade do seu caro pupilo ". Liset.

"P.S. — O apelido do marido de sua irmã é Trigoso. " Liset.}}

Dois meses depois Amaro foi nomeado pároco de Feirão, na Gralheira, serra da Beira Alta. Esteve ali desde Outubro até o fim das neves.

Feirão é uma paróquia pobre de pastores e naquela época quase desabitada. Amaro passou o tempo muito ocioso, ruminando o seu tédio à lareira, ouvindo fora o Inverno bramir na serra. Pela Primavera vagaram nos distritos de Santarém e de Leiria paróquias populosas, com boas côngruas. Amaro escreveu logo à irmã contando a sua pobreza em Feirão; ela mandou— lhe, com recomendações de economia, doze moedas para ir a Lisboa requerer. Amaro partiu imediatamente. Os ares lavados e vivos da serra tinham— lhe fortificado o sangue; voltava robusto, direito, simpático, com uma boa cor na pele trigueira.

Logo que chegou a Lisboa foi à Rua dos Calafates no 53, a casa da tia: achou-a velha, com laços vermelhos numa cuia enorme, toda coberta de pó-de-arroz. Tinha-se feito devota, e foi com uma alegria piedosa que abriu os seus magros braços a Amaro.

— Como estás bonito! Ora não há! Quem te viu? Ih, Jesus! Que mudança!

Admirava-lhe a batina, a coroa: e contando-lhe as suas desgraças, com exclamações sobre a salvação da sua alma e sobre a carestia dos gêneros, foi-o levando para o terceiro andar, a um quarto que dava para o saguão.

— Ficas aqui como um abade, disse-lhe ela. E baratinho!... Ai! ter— te de graça queria eu, mas... Tenho sido muito infeliz, Joãozinho!... Ai! desculpa, Amaro! Estou sempre com Joãozinho na cabeça...

Amaro procurou logo ao outro dia o padre Liset em S. Luís. Tinha ido para França. Lembrou-se então da filha mais nova da senhora marquesa de Alegros, a Sra. D. Luísa, que estava casada com o conde de Ribamar, conselheiro de Estado, com influência, regenerador fiel desde cinqüenta e um, duas vezes ministro do reino.

E, por conselho da tia, Amaro, logo que meteu o seu requerimento, foi uma manhã a casa da Sra. condessa de Ribamar, a Buenos Aires. Á porta um coupé esperava.

— A senhora condessa vai sair, disse um criado de gravata branca e quinzena de alpaca, encostado à ombreira do pátio, de cigarro na boca.

Nesse momento, duma porta de batentes de baeta verde, sobre um degrau de pedra, ao fundo do pátio lajeado, uma senhora saía, vestida de claro. Era alta, magra, loura, com pequeninos cabelos frisados sobre a testa, lunetas de ouro num nariz comprido e agudo, e no queixo um sinalzinho de cabelos claros.

— A senhora condessa já me não conhece? disse Amaro com o chapéu na mão, adiantando-se curvado. Sou o Amaro.

— O Amaro? — disse ela, como estranha ao nome. Ah! bom Jesus, quem ele é! Ora não há! Está um homem. Quem diria!

Amaro sorria-se.

— Eu podia lá esperar! continuou ela admirada. E está agora em Lisboa?

Amaro contou a sua nomeação para Feirão, a pobreza da paróquia...

— De maneira que vim requerer, senhora condessa.

 

Ela escutava-o com as mãos apoiadas numa alta sombrinha de seda clara, e Amaro sentia vir dela um perfume de pó-de-arroz e uma frescura de cambraias.

— Pois deixe estar, disse ela, fique descansado. Meu marido há-de falar. Eu me encarrego disso. Olhe, venha por cá. — E com o dedo sobre o canto da boca: — Espere, amanhã vou para Sintra. Domingo, não. O melhor é daqui a quinze dias. Daqui a quinze dias pela manhã, sou certa. — E rindo com os seus largos dentes frescos: — Parece que o estou a ver traduzir Chateaubriand com a mana Luísa! Como o tempo passa!

— Passa bem a senhora sua mana? perguntou Amaro.

— Sim, bem. Está numa quinta em Santarém.

Deu-lhe a mão, calçada de peau de suède, num aperto sacudido que fez tilintar os seus braceletes de ouro, e saltou para o coupé, magra e ligeira, com um movimento que levantou brancuras de saias.

Amaro começou então a esperar. Era em Julho, no pleno calor. Dizia missa pela manhã em S. Domingos, e durante o dia, de chinelos e casaco de ganga, arrastava a sua ociosidade pela casa. Às vezes ia conversar com a tia para a sala de jantar; as janelas estavam cerradas, na penumbra zumbia a monótona sussurração das moscas; a tia a um canto do velho canapé de palhinha fazia croché, com a luneta encavalada na ponta do nariz; Amaro, bocejando, folheava um antigo volume do Panorama.

À noitinha saía, a dar duas voltas no Rossio. Abafava-se, no ar pesado e imóvel: a todos os cantos se apregoava monotonamente água fresca! Pelos bancos, debaixo das árvores, vadios remendados dormitavam; em redor da Praça, sem cessar, caleches de aluguel vazias rodavam vagarosamente; as claridades dos cafés reluziam; e gente encalmada, sem destino, movia, bocejando, a sua preguiça pelos passeios das ruas.

Amaro então recolhia, e no seu quarto, com a janela aberta ao calor da noite, estirado em cima da cama, em mangas de camisa, sem botas, fumava cigarros, ruminava as suas esperanças. A cada momento lhe acudiam, com rebates de alegria, as palavras da senhora condessa: fique descansado, meu marido há-de falar! E via-se já pároco numa bonita vila, numa casa com quintal cheio de couves e de saladas frescas, tranqüilo e importante, recebendo bandejas de doce das devotas ricas.

Vivia então num estado de espirito muito repousado. As exaltações, que no seminário lhe causava a continência, tinham-se acalmado com as satisfações que lhe dera em Feirão uma grossa pastora, que ele gostava de ver ao domingo tocar à missa, dependurada da corda do sino, rolando nas saias de saragoça, e a face a estourar de sangue. Agora, sereno, pagava pontualmente ao Céu as orações que manda o ritual, trazia a carne contente e calada, e procurava estabelecer-se regaladamente.

No fim de quinze dias foi a casa da senhora condessa.

— Não está, disse-lhe um criado da cavalariça.

Ao outro dia voltou, já inquieto. Os batentes verdes estavam abertos; e Amaro subiu devagar, pisando, muito acanhado, o largo tapete vermelho, fixado com varões de metal. Da alta clarabóia caia uma luz suave; ao cimo da escada, no patamar, sentado numa banqueta de marroquim escarlate, um criado encostado à parede branca envernizada, com a cabeça pendente e o beiço caído, dormia. Fazia um grande calor; aquele alto silêncio aristocrático aterrava Amaro; esteve um momento, com o seu guarda-sol pendente do dedo mínimo, hesitando; tossiu devagarinho, para acordar o criado que lhe parecia terrível com a sua bela suíça preta, o seu rico grilhão de ouro; e ia descer, quando ouviu por detrás dum reposteiro um riso grosso de homem. Sacudiu com o lenço o pó esbranquiçado dos sapatos, puxou os punhos, e entrou muito vermelho numa larga sala com estofos de damasco amarelo; uma grande luz entrava das varandas abertas, e viam— se arvoredos de jardim. No meio da sala três homens de pé conversavam. Amaro adiantou-se, balbuciou:

— Não sei se incomodo...

Um homem alto, de bigode grisalho e óculos de ouro, voltou-se surpreendido, com o charuto ao canto da boca e as mãos nos bolsos. Era o senhor conde.

— Sou o Amaro...

— Ah, disse o conde, o Sr. padre Amaro! Conheço muito bem! Tem a bondade... Minha mulher falou-me. Tem a bondade.

E dirigindo-se a um homem baixo e repleto, quase calvo, de calças brancas muito curtas:

— É a pessoa de quem lhe falei. — Voltou-se para Amaro: — É o senhor ministro.

Amaro curvou-se, servilmente.

— O Sr. padre Amaro, disse o conde de Ribamar, foi criado de pequeno em casa de minha sogra. Nasceu lá, creio eu...

— Saiba o senhor conde que sim, disse Amaro, que se conservava afastado, com o guarda-sol na mão.

— Minha sogra, que era toda devota e uma completa senhora — já não há disso! — fê-lo padre. Houve até um legado, creio eu... Enfim, aqui o temos pároco... Onde, Sr. padre Amaro?

— Feirão, excelentíssimo senhor.

— Feirão?... disse o ministro estranhando o nome.

— Na Serra da Gralheira, informou logo o outro sujeito, ao lado.

Era um homem magro, entalado numa sobrecasaca azul, muito branco de pele, com soberbas suíças dum negro de tinta, e um admirável cabelo lustroso de pomada, apartado até ao cachaço numa risca perfeita.

— Enfim, resumiu o conde, um horror! Na serra, uma freguesia pobre, sem distrações, com um clima horrível...

— Eu meti já requerimento, excelentíssimo senhor, arriscou Amaro timidamente.

— Bem, bem, afirmou o ministro. Há-de arranjar-se, — e mascava o seu charuto.

— É uma justiça, disse o conde. Mais, é uma necessidade! Os homens novos e ativos devem estar nas paróquias difíceis, nas cidades... É claro! Mas não; olhe, lá ao pé da minha quinta, em Alcobaça, há um velho, um gotoso, um padre-mestre antigo, um imbecil!... Assim perde-se a fé.

— É verdade, disse o ministro, mas essas colocações nas boas paróquias devem naturalmente ser recompensas dos bons serviços. É necessário o estímulo...

— Perfeitamente, replicou o conde; mas serviços religiosos, profissionais, serviços à Igreja, não serviços aos governos.

O homem das soberbas suíças negras teve um gesto de objeção.

— Não acha? perguntou-lhe o conde.

— Respeito muito a opinião de vossa excelência, mas se me permite... Sim, digo eu, os párocos na cidade são-nos dum grande serviço nas crises eleitorais. Dum grande serviço!

— Pois sim. Mas...

— Olhe vossa excelência, continuou ele, sôfrego da palavra. Olhe vossa excelência em Tomar. Por que perdemos? Pela atitude dos párocos. Nada mais.

O conde acudiu:

— Mas perdão, não deve ser assim; a religião, o clero não são agentes eleitorais.

— Perdão.., queria interromper o outro.

O conde suspendeu-o, com um gesto firme; e gravemente, em palavras pausadas, cheias da autoridade dum vasto entendimento:

— A religião, disse ele, pode, deve mesmo auxiliar os governos no seu estabelecimento, operando, por assim dizer, como freio...

— Isso, isso! murmurou arrastadamente o ministro, cuspindo películas mascadas de charuto.

— Mas descer às intrigas, continuou o conde devagar, aos imbróglios... Perdoe-me meu caro amigo, mas não é dum cristão.

— Pois sou-o, senhor conde, exclamou o homem das suíças soberbas. Sou-o a valer! Mas também sou liberal. E entendo que no governo representativo... Sim, digo eu... com as garantias mais sólidas...

— Olhe, interrompeu o conde, sabe o que isso faz? Desacredita o clero, e desacredita a política.

— Mas são ou não as maiorias um princípio sagrado? Gritava rubro o das suíças, acentuando o adjetivo.

— São um principio respeitável.

— Upa! upa, excelentíssimo senhor! Upa!

O padre Amaro escutava, imóvel.

— Minha mulher há-de querer vê-lo, disse-lhe então o conde. E dirigindo-se a um reposteiro que levantou: — Entre. É o Sr. padre Amaro, Joana!

Era uma sala forrada de papel branco acetinado, com móveis estofados de casimira clara. Nos vãos das janelas, entre as cortinas de pregas largas duma fazenda adamascada cor de leite, apanhadas quase junto do chão por faixas de seda, arbustos delgados, sem flor, erguiam em vasos brancos a sua folhagem fina. Uma meia-luz fresca dava a todas aquelas alvuras um tom delicado de nuvem. Nas costas duma cadeira uma arara empoleirada, firme num só pé negro, coçava vagarosamente, com contrações aduncas, a sua cabeça verde. Amaro, embaraçado, curvou-se logo para um canto do sofá, onde viu os cabelinhos louros e frisados da senhora condessa que lhe enchiam vaporosamente a testa, e os aros de ouro da sua luneta reluzindo. Um rapaz gordo, de face rechonchuda, sentado diante dela numa cadeira baixa, com os cotovelos sobre os joelhos abertos, ocupava-se em balançar, como um pêndulo, um pince-nez de tartaruga. A condessa tinha no regaço uma cadelinha, e com a sua mão seca e fina cheia de veias, acamava-lhe o pêlo branco como algodão.

— Como está, Sr. Amaro? — A cadela rosnou. — Quieta, Jóia. Sabe que já falei no seu negócio? Quieta, Jóia... O ministro está ali.

— Sim, minha senhora, disse Amaro, de pé.

— Sente-se aqui, Sr. padre Amaro.

Amaro pousou-se à beira dum fauteuil, com o seu guarda-sol na mão, — e reparou então numa senhora alta que estava de pé, junto do piano, falando com um rapaz louro.

— Que tem feito estes dias, Amaro? disse a condessa. Diga-me uma coisa: sua irmã?

— Está em Coimbra, casou.

— Ah! casou! disse a condessa, fazendo girar os seus anéis.

Houve um silêncio. Amaro, de olhos baixos, passava, com um gesto embaraçado e errante, os dedos pelos beiços.

— O Sr. padre Liset está para fora? perguntou.

— Está em Nantes. Tinha uma irmã a morrer, disse a condessa. — Está o mesmo sempre: muito amável, muito doce. É a alma mais virtuosa!...

— Eu prefiro o padre Félix, disse o rapaz gordo, estirando as pernas.

— Não diga isso, primo! Jesus, brada aos Céus! Pois então, o padre Liset, tão respeitável!... E depois outras maneiras de dizer as coisas, com uma bondade... Vê-se que é um coração delicado...

— Pois sim, mas o padre Félix...

— Ai, nem diga isso! Que o padre Félix é uma pessoa de muita virtude, decerto; mas o padre Liset tem uma religião mais... — e com um gesto delicado procurava a palavra: — mais fina, mais distinta... Enfim, vive com outra gente. — E sorrindo para Amaro: — Pois não acha?

Amaro não conhecia o padre Félix, não se recordava do padre Liset.

— Já é velho o Sr. padre Liset, observou ao acaso.

— Crê? disse a condessa. Mas muito bem conservado! E que vivacidade, que entusiasmo!... Ai, é outra coisa! — E voltando-se para a senhora que estava junto do piano: — Pois não achas, Teresa?

— Já vou, respondeu Teresa, toda absorvida.

Amaro afirmou-se então nela. Pareceu-lhe uma rainha, ou uma deusa, com a sua alta e forte estatura, uma linha de ombros e de seio magnífica; os cabelos pretos um pouco ondeados destacavam sobre a palidez do rosto aquilino semelhante ao perfil dominador de Maria Antonieta; o seu vestido preto, de mangas curtas e decote quadrado, quebrava, com as pregas da cauda muito longa toda adornada de rendas negras, o tom monótono das alvuras da sala; o colo, os braços estavam cobertos por uma gaze preta, que fazia aparecer através da brancura da carne; e sentia-se nas suas formas a firmeza dos mármores antigos, com o calor dum sangue rico.

Falava baixo, sorrindo, numa língua áspera que Amaro não compreendia, cerrando e abrindo o seu leque preto — e o rapaz louro, bonito, escutava-a retorcendo a ponta de um bigode fino, com um quadrado de vidro entalado no olho.

— Havia muita devoção na sua paróquia, Sr. Amaro? perguntava, no entanto, a condessa.

— Muita, muito boa gente.

— É onde ainda se encontra alguma fé, é nas aldeias, considerou ela com um tom piedoso. — Queixou-se da obrigação de viver na cidade, nos cativeiros do luxo: desejaria habitar sempre na sua quinta de Carcavelos, rezar na pequena capela antiga, conversar com as boas almas da aldeia! — e a sua voz tornara-se terna.

O rapaz rechonchudo ria-se:

— Ora, prima! dizia, ora, prima! — Não, ele, se o obrigassem a ouvir missa, numa capelinha de aldeia, até lhe parecia que perdia a fé!... Não compreendia, por exemplo, a religião sem música... Era lá possível uma festa religiosa, sem uma boa voz de contralto?

— Sempre é mais bonito, disse Amaro.

— Está claro que é. É outra coisa! Tem cachet! Ó prima, lembra-se daquele tenor... como se chamava ele? O Vidalti! Lembra-se do Vidalti, na quinta-feira de Endoenças, nos Inglesinhos? O tantum ergo?

 

— Eu preferia-o no Baile de Máscaras, disse a condessa.

— Olhe que não sei, prima, olhe que não sei!

No entanto o rapaz louro viera apertar a mão à senhora condessa, falando-lhe baixo, muito risonho; Amaro admirava a nobreza da sua estatura, a doçura do seu olhar azul; reparou que lhe caíra uma luva, e apanhou-lha servilmente. Quando ele saiu Teresa, depois de se ter aproximado vagarosamente da janela e olhando para a rua — foi sentar-se numa causeuse com um abandono que punha em relevo a magnífica escultura do seu corpo, e voltando-se preguiçosamente para o rapaz rechonchudo:

— Vamo-nos, João?

A condessa disse-lhe então:

— Sabes que o Sr. padre Amaro foi criado comigo em Benfica?

Amaro fez-se vermelho: sentia que Teresa pousava sobre ele os seus belos olhos dum negro úmido como o cetim preto coberto de água.

— Está na província agora? Perguntou ela, bocejando um pouco.

— Sim, minha senhora, vim há dias.

— Na aldeia? continuou ela, abrindo e cerrando vagarosamente o seu leque.

Amaro via pedras preciosas reluzirem nos seus dedos finos; disse, acariciando o cabo do guarda-sol:

— Na serra, minha senhora.

— Imagina tu, acudiu a condessa, é um horror! Há sempre neve, diz que a igreja não tem telhado, são tudo pastores. Uma desgraça! Eu pedi ao ministro a ver se o mudávamos. Pede-lhe tu também...

— O quê? disse Teresa.

A condessa contou que Amaro requerera para uma paróquia melhor. Falou de sua mãe, da amizade que ela tinha a Amaro...

— Morria-se por ele. Ora um nome que ela lhe dava... Não se lembra?

— Não sei, minha senhora.

— Frei Maleitas!... Tem graça! Como o Sr. Amaro era amarelito, sempre metido na capela...

Mas Teresa, dirigindo-se à condessa:

— Sabes com quem se parece este senhor?

A condessa afirmou-se, o rapaz rechonchudo fincou a luneta.

— Não se parece com aquele pianista do ano passado? continuou Teresa. Não me lembra agora o nome...

— Bem sei, o Jalette, disse a condessa. — Bastante. No cabelo, não.

— Está visto, o outro não tinha coroa!

Amaro fez-se escarlate. Teresa ergueu-se arrastando a sua soberba cauda, sentou-se ao piano.

— Sabe música? perguntou, voltando-se para Amaro.

— A gente aprende no seminário, minha senhora.

Ela correu a mão, um momento, sobre o teclado de sonoridades profundas, e tocou a frase do Rigoletto, parecida com o Minuete de Mozart, que diz Francisco I, despedindo-se, no sarau do primeiro ato, da senhora de Crécy, — e cujo ritmo desolado tem a abandonada tristeza de amores que findam, e de braços que se desenlaçam em despedidas supremas.

Amaro estava enlevado. Aquela sala rica com as suas alvuras de nuvem, o piano apaixonado, o colo de Teresa que ele via sob a negra transparência da gaze, as suas tranças de deusa, os tranquilos arvoredos de jardim fidalgo davam-lhe vagamente a idéia duma existência superior, de romance, passada sobre alcatifas preciosas, em coupés acolchoados, com árias de óperas, melancolias de bom gosto e amores dum gozo raro. Enterrado na elasticidade da causeuse, sentindo a música chorar aristocraticamente, lembrava-lhe a sala de jantar da tia e o seu cheiro de refogado: e era como o mendigo que prova um creme fino, e, assustado, demora o seu prazer — pensando que vai voltar à dureza das côdeas secas e à poeira dos caminhos.

No entanto Teresa, mudando bruscamente de melodia, cantou a antiga ária inglesa de Haydn, que diz tão finamente as melancolias da separação:

The village seems dead and asleep When Lubin is away!...

— Bravo! bravo! exclamou o ministro da Justiça, aparecendo à porta, batendo docemente as palmas. Muito bem, muito bem! Deliciosamente!

— Tenho um pedido a fazer-lhe, Sr. Correia, disse Teresa erguendo-se logo.

O ministro veio, com uma pressa galante:

— Que é, minha senhora? que é?

O conde e o sujeito de magníficas suíças tinham entrado discutindo ainda.

— A Joana e eu temos que lhe pedir, disse Teresa ao ministro.

— Eu já pedi! já pedi mesmo duas vezes! acudiu a condessa.

— Mas, minhas senhoras, disse o ministro, sentando-se confortavelmente, com as pernas muito estiradas, a face satisfeita: de que se trata? É uma coisa grave? meu Deus! prometo, prometo solenemente...

— Bem, disse Teresa, batendo-lhe com o leque no braço. Então qual é a melhor paróquia vaga?

— Ah! disse o ministro, compreendendo e olhando para Amaro, que vergou os ombros, corado.

O homem das suíças, que estava de pé fazendo saltar circunspectamente os berloques, adiantou-se, cheio de informações:

— Das vagas, minha senhora, é Leiria, capital do distrito e sede do bispado.

— Leiria? disse Teresa. Bem sei, é onde há umas ruínas?

— Um Castelo, minha senhora, edificado por D. Dinis.

— Leiria é excelente!

— Mas perdão, perdão! disse o ministro, Leiria, sede do bispado, uma cidade... O Sr. padre Amaro é um eclesiástico novo...

— Ora, Sr. Correia! exclamou Teresa, e o senhor não é novo?

O ministro sorriu, curvando-se.

— Dize alguma coisa, tu, disse a condessa a seu marido, que coçava ternamente a cabeça da arara.

— Parece-me inútil, o pobre Correia está vencido! A prima Teresa chamou-lhe novo!

— Mas perdão, protestou o ministro. Não me parece que seja uma lisonja excepcional; eu não sou também tão antigo...

— Oh, desgraçado! gritou o conde, lembra-te que já conspiravas em 1820.

— Era meu pai, caluniador, era meu pai!

Todos riram.

— Sr. Correia, disse Teresa, está entendido. O Sr. padre Amaro vai para Leiria!

— Bem, bem, sucumbo, disse o ministro com gesto resignado. Mas é uma tirania!

Thank you, fez Teresa, estendendo-lhe a mão.

— Mas, minha senhora, estou a estranhá-la, disse o ministro, fitando-a.

— Estou contente hoje, disse ela. Olhou um momento para o chão, distraída, dando pequeninas pancadas no vestido de seda, levantou-se, foi sentar-se ao piano bruscamente, e recomeçou a doce ária inglesa:

The village seems dead and asleep When Lubin is away!...

Entretanto, o conde tinha-se aproximado de Amaro, que se erguera.

— É negócio feito, disse-lhe ele. O Correia entende-se com o bispo. Daqui a uma semana está nomeado. Pode ir descansado.

Amaro fez uma cortesia, e, servil, foi dizer ao ministro que estava junto do piano:

— Senhor ministro, eu agradeço...

— À senhora condessa, à senhora condessa, disse o ministro sorrindo.

— Minha senhora, eu agradeço, veio ele dizer à condessa, todo curvado.

— Ai, agradeça a Teresa. Ela quer ganhar indulgências, parece.

— Lembre-me nas suas orações, Sr. padre Amaro, disse ela. E continuou, com a sua voz magoada, dizendo ao piano — as tristezas da aldeia quando Lubin está ausente!

Amaro daí a uma semana soube o seu despacho. Mas não tornara a esquecer aquela manhã em casa da Sra. condessa de Ribamar, — o ministro de calças muito curtas, enterrado na poltrona, prometendo o seu despacho; a luz clara e calma do jardim entrevisto; o rapaz alto e louro que dizia yes... Cantava-lhe sempre no cérebro aquela ária triste do Rigoleto: e perseguia-o a brancura dos braços de Teresa, sob a gaze negra! Instintivamente via-os enlaçarem-se devagar, devagar, em torno do pescoço airoso do rapaz louro: detestava-o então, e a língua bárbara que falava, e a terra herética de onde viera: e latejavam-lhe as fontes à idéia de que um dia poderia confessar aquela mulher divina, e sentir o seu vestido de seda preta roçar pela sua batina de lustrina velha, na escura intimidade do confessionário.

Um dia, ao amanhecer, depois de grandes abraços da tia, partiu para Santa Apolônia, com um galego que lhe levava o baú. A madrugada rompia. A cidade estava silenciosa, os candeeiros apagavam-se. Às vezes, uma carroça passava rolando, abalando a calçada; as ruas pareciam-lhe intermináveis; saloios começavam a chegar montados nos seus burros, com as pernas balouçadas, cobertas de altas botas enlameadas; numa ou noutra rua uma voz aguda já apregoava os jornais; e os moços dos teatros corriam com o pote da massa, pregando nas esquinas os cartazes.

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