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XI
Censuravel descuido tem sido o nosso em não conduzir o leitor a um dos logares mais importantes da aldeia, onde se passam os singelos episodios d'esta narração.
Que se diria de um cicerone que, por esquecimento ou proposito, deixasse de apresentar um viajante, recem-chegado a uma cidade, na assembleia, club, gremio, ou o que quer que seja, onde se reunem as principaes personagens d'ella, onde se compendiam as grandes questões e interesses locaes, as pequenas vaidades e intrigas, as modas ephemeras, os voluveis caprichos que agitam os espiritos, onde se commenta o boato de hontem, se dão ao de hoje mil versões diversas e se adivinha já o de ámanhã?
Pois no mesmo delicto incorremos nós, chegando a este undecimo capitulo, sem ter guiado os leitores á venda de Damião Canada, a qual podia dizer-se o verdadeiro coração d'aquelle organismo social.
Tudo quanto na terra havia de certa representação alli ia falar da coisa publica e tambem da particular; – da particular dos outros mais do que da propria, entenda-se.
Aproveitemos um resto da tarde, em que a natureza após horas continuadas de chuva e de temporal, como que procurou respirar e permittiu que o sol, já no occaso, levantasse uma ponta do manto de nuvens que o envolvia, e mandasse os raios amortecidos ás cristas das serras fronteiras; aproveitemos este intervallo de socego para entrarmos na taberna.
Tinham passado dois dias depois do passeio ao monte, que descrevemos.
Henrique de Souzellas teve de condescender com uma leve angina, que lhe legaram os rigores d'aquella excursão, e ficou em Alvapenha, entretendo-se a escrever cartas aos amigos e a scismar n'uma imminente desorganisação da larynge, a que imaginava conduzirem-o os seus incómmodos actuaes.
No Mosteiro nada tambem occorreu, que mereça narrar-se ao leitor.
Deixemos, pois, por momentos, os nossos conhecidos, e vejamos o que dizem os frequentadores do estabelecimento de Damião Canada.
Brilhante é a assembleia alli reunida. Além do proprietario, barriguda e rubicunda figura, que, assim posta ao pé das pipas, podia servir de typo para a representação de um Sileno, havia varias individualidades de peso nos destinos de toda a comarca.
Dê-se primeiro menção ao nosso já conhecido Bento Pertunhas, a quem as humanidades não faziam soberbo a ponto de recusar-se a entrar em communicação social com os seus conterraneos.
Observada esta deferencia, mencionemos os mais.
Um era nem mais nem menos do que o sr. Joãozinho das Perdizes, em quem já temos ouvido falar por mais do que uma vez.
Era o dicto sr. Joãozinho morgado e proprietario em uma das freguezias proximas, chamada de Pinchões; mas propriedades e morgadia andavam-lhe tão embaraçadas em redes de demandas e de hypothecas, que Deus nos acuda.
Os autos, que diziam respeito á casa das Perdizes, enchiam um cartorio. Graças, porém, ao seu genio despreoccupado e folgazão, o sr. Joãozinho deixava aos procuradores os cuidados judiciaes; os cuidados agricolas aos rendeiros e feitores; os do futuro, a Deus ou ao diabo; e para si não reservava nenhuns.
Proseguia n'aquella vida airada, que já lhe era necessidade. Frequentava as feiras, onde ia para jogar e fazer trocas de cavallos com os ciganos, e ás vezes para dar e levar sovas monumentaes. – Nos mezes de caça, a vida do morgado era perfeitamente nómada: estendia por leguas e leguas as suas excursões venatorias, contentando-se com qualquer cama e comida, de que, de ordinario, participavam os cães, que o acompanhavam; distrahia-se tambem a conquistar os corações femininos da freguezia, calando com dinheiro algumas queixas mais acerbas e insoffridas de um ou outro pae, marido ou irmão. Em todas as tabernas das freguezias vizinhas tinha contas em aberto, o que não obstava a que entrasse em todas com ares de conquistador e expendesse alli as suas opiniões absolutas, com grande exhibição de berros e de punhadas.
Com todas estas qualidades, era o sr. Joãozinho das Perdizes um homem verdadeiramente popular entre os da sua freguezia; movia-os no sentido que quizesse.
Tudo por lá era o sr. Joãozinho; não havia funcção, rixa, solemnidade official, para que elle não fôsse consultado. É que a superioridade do morgado das Perdizes não era d'aquellas que intimidam e acanham o povo; ninguem hesitava em falar-lhe e em procural-o em casa, porque, falando e vivendo com elles, o sr. Joãozinho não constrangia ninguem. Os seus defeitos, a sua vida de feiras e de tabernas eram outras tantas causas a popularisal-o; justo é porém que se diga que algumas boas qualidades tambem para isso concorriam. O sr. Joãozinho não era avarento, nem soberbo. Sentado a beber, e com dinheiro no bolso, não consentia que pessoa alguma, desde o mais rico proprietario até o jornaleiro mais miseravel, recusasse tomar assento a seu lado. Não eram poucos os filhos-familias que resgatára de soldado, sem a menor caução ou interesse, chegando a ficar empenhado para os livrar; e se algum desgraçado se via perseguido pela justiça, encontrava, fôsse qual fôsse a enormidade do crime, asylo seguro na herdade das Perdizes, que em certas épocas era um perfeito valhacouto de malfeitores.
Graças, pois, a estas e analogas qualidades, era o sr. Joãozinho uma verdadeira potencia eleitoral.
Eis ahi o homem moralmente.
Pelo lado physico, supponham um sujeito de trinta e cinco annos, gordo, vermelho, de longas e encaracoladas melenas em desordem, bigode aparado e a barba quasi sempre mal feita ou por fazer. Na maneira de vestir inculcava os habitos da vida e um certo desleixo com sua pessoa, que lhe era peculiar. Trazia o collete quasi sempre desapertado e com alguns botões de menos de modo que os peitos da camisa formavam hernia pela abertura; entre as calças descaídas e o collete avistava-se o cóz das ceroulas, no qual era geito muito seu o enfiar a mão; ao pescoço trazia um lenço de seda escarlate, negligentemente atado e com longas pontas fluctuantes; uma jaqueta de pelles com alamares, calças de fazenda chamada pelle do diabo, botas de montar e esporas constituiam o resto do vestuario. O cigarro, que quasi sempre fumava até ás ultimas, crestára-lhe profundamente as pontas dos dedos e o canto dos labios. O palito andava-lhe sempre atraz da orelha; a navalha de ponta na algibeira, e, para qualquer parte que ia, acompanhava-o uma tumultuosa matilha de galgos, podengos e perdigueiros.
Segunda e não menos importante personalidade era a do sr. Eusebio Seabra, chamado por antonomasia – o Brazileiro.
Era um homem de cincoenta annos; bem figurado e sisudo, de falar compassado e com seus quês de oraculo, phrases sentenciosas e ares de protecção a todo o mundo.
Saira creança da aldeia e fôra tentar fortuna ao Brazil. Por lá esteve quarenta annos, e voltou o homem grave que vemos e rico. Como enriqueceu não sei, e ninguem na terra o sabia. Veio edificar uma casa no sitio em que nascera, uma casa grande de cantaria e azulejo, com tres andares e varandas, jardim com estatuas de louça e alegretes pintados de verde e amarello, o qual jardim tinha mais fama n'aquellas aldeias vizinhas do que os jardins suspensos da Babylonia. Trouxera um papagaio e uma arara, igualmente famosos, e uma botica homoepatica, que elle proprio manipulava.
As ambições de Eusebio Seabra limitavam-se a vir a ser a primeira personagem de influencia na aldeia. Para isso principiou por fazer alguns reparos na igreja parochial, presenteou com vestidos novos todos os santos dos altares, e mandou renovar um sino, que havia doze annos tocava a rachado. Fez á sua custa a festa do orago, chegando a mandar vir fogo preso da cidade e um aerostato, que ardeu a pouca altura do chão. Apesar, porém, de todos estes beneficios á localidade, o conselheiro Manoel Bernardo, pae da morgadinha, comquanto vivesse quasi sempre em Lisboa, continuava a fazer-lhe sombra e a contestar-lhe as ambiciosas vistas. Por isso, apesar da apparente amizade com que Seabra o acolhia e lisonjeava até, conservava por elle no fundo uma má vontade, um ciume, de que eram de receiar, tarde ou cêdo, explosões.
Seabra era tão asseiado, quanto o sr. Joãozinho das Perdizes descurado no seu vestir. Usava sempre de suissa irreprehensivelmente talhada em volta do queixo; camisa muito lavada; peito aberto e tres grandes botões de brilhantes; no trajo combinavam-se as variegadas côres de uma ave da America; e o ouro, distribuido com profusão por todos os accessorios da sua pessoa, attestava os bons resultados dos seus quarenta annos do Brazil. Passeiava pela aldeia de chinelos de marroquim verde ou sapato de tapete, e era tal n'elle a delicadeza do andar, que voltava a casa sem que uma mancha ennodoasse a alvura das suas meias de algodão fino. Aos domingos e dias de festa indignava a relva dos caminhos, calcando-a com bota de polimento.
Além d'estes dois e do nosso conhecido Zé P'reira, que bebia, em silencio, ao pé do taberneiro, havia um padre, coadjuctor da freguezia, dois lavradores abastados e já de avançada idade, e outros que deixaremos confundidos na massa indistincta dos comparsas.
No momento, em que entramos, usava da palavra o brazileiro, que estava sentado á porta da taberna, na mais limpa cadeira do estabelecimento.
– Pois é verdade – disse elle – fômos todos da mesma creação. O conselheiro Manoel Bernardo saiu d'aqui para Lisboa um anno depois de eu ir para o Brazil. Andámos ambos na mesma escola, que era a do padre Joaquim, alli pelo sitio da Corredoura. Vossemecê ha de estar lembrado, sr. Luiz – accrescentou, dirigindo-se com a affabilidade protectora, que o caracterisava, a um dos lavradores.
– Ora se estou! muito bem. Era na casa em que hoje mora o Chico da Luciana.
– É verdade que sim. Pois alli andei eu e o conselheiro e aquelle ratão do Vicente, herbanario, que era já rapaz taludo. Lembra-me, como se fôsse hoje, de quando jogavamos todos tres a pedra no terreiro da Corredoura.
– Olha lá, hein! – diziam dois lavradores com um sorriso cortezão nos labios – então com que o sr. Seabra tambem jogava a pedra! Eh! eh! eh!..
– Ora, como um homem. Eu fui levadinho da bréca. Boa sóva levei de minha mãe, por causa de umas calças novas que rompi.
– Ora vêdes? – diziam os outros.
– Ai tempos, tempos! – disse, suspirando, o brazileiro.
– Quem havia de dizer então ao que v. s.a e o conselheiro tinham de chegar! – notou lisonjeiramente o sr. Bento Pertunhas.
– Eu sim – respondeu com toda a sua modestia o brazileiro. – A que cheguei eu? Comi candeias accêsas pelo Brazil, para arranjar um boccado de pão para o resto da vida; com isso me contento. O mais, sou um pobre diabo que ninguem conhece, um homem ignorante, sem principios. Elle é outra coisa.
– Não é tanto assim – insistiu Pertunhas – todos sabem que v. s.a se quizesse…
– Olhe, meu caro amigo, eu conheço-me; se tivesseo juizo de muitos, que por ahi vejo figurando, então havia de me vêr na brecha; porque, não é por me gabar, mas não me tenho por menos do que muitos d'elles.
– Ora pois, não, não – disseram os lavradores, Pertunhas e o padre.
– Alguns que até ministros teem sido…
– Por essa estou eu…
– O conselheiro mesmo… – resmungou o padre, fungando uma pitada jesuitica – sim, aqui para nós…
– Tanto não digo – continuou o brazileiro, mais jesuiticamente ainda. – O conselheiro… vamos… Faça-se-lhe justiça. Eu não quero dizer que elle seja uma coisa por ahi além… sim… Que diabo tem elle feito a final?.. Mas… Não é dos peores, não é dos peores. Faça-se-lhe justiça. Não é homem de grandes talentos… isso não; nem mesmo de grande fundo. Sim… Devemos confessar que esta é a verdade… Mas… emfim, vamos andando…Cada um faz o que pode – concluiu o brazileiro, depois de ter feito justiça ao conselheiro.
– No que elle tem andado mal é em prometter mais do que pode fazer. Ha quantos annos nos anda a falar na estrada, e até hoje ainda nem palmo d'ella? – opinou Pertunhas.
– Meu amigo, engana meninos e chupa-lhe o pão: diz o dictado – ponderou o brazileiro.
– A falar verdade!.. – disse um dos lavradores – com a influencia que elle tem, podia…
– Ora adeus! palanfrorio – atalhou o padre – bem me fio eu na influencia do conselheiro.
– Eh! eh! eh! – respondeu o brazileiro, agradado do scepticismo do padre, e accrescentou com um sorriso velhaco: – Não, elle diz que fala com os ministros, que tal, que sim senhores, que domina o partido. Emfim… Elle lá o sabe.
– Para mim é que elle vem de carrinho…
– Eu não sei – concluiu com requinte de velhaquez o brazileiro.
– Pois eu cá – disse o sr. Joãozinho, que estivera bebendo em silencio, e descarregou um murro na banca, que fez tilintar os copos. – Eu cá já disse; se os taes homens das bandeirolas me tornam a passar por as terras, sempre lhes meço as costas com um marmeleiro, que lá tenho, e que já me serviu para varrer a feira de Santo Estevão. Uns mariolas!..
E como para desafogar o pêso da sua amabilidade, despediu um pontapé a um podengo, que lhe viera roçar por as pernas, e fel-o sair ganindo.
– Dizem que vão principiar outra vez com os trabalhos das estradas – informou o taberneiro, enchendo de novo o copo ao sr. Joãozinho.
– Pois que vejam no que se mettem. Cautelinha commigo! – resmungou este. – Faço como d'aquella vez em que eu e a minha gente queimámos toda a papelada da camara e do escrivão da fazenda.
– Agora no inverno é que elles hão de principiar com os trabalhos. Sempre se fia em boa! – disse, encolhendo os hombros, mestre Pertunhas.
– Vossemecê é que está a ler – veio-lhe á mão obrazileiro. – Então não sabe que as eleições são em fevereiro?
– Ai, é verdade! não me tinha lembrado d'isso! – exclamou o padre.
– Tambem não sei como será d'esta vez essa historia das eleições – acudiu o sr. Joãozinho. – Cáeu e a minha gente ainda estamos a vêr no que param as coisas. Eu já não estou para ser logrado. Até agora tenho dado ao conselheiro a freguezia em pêso, sem pedir nada, ou se pedi foi o mesmo que não pedisse. Vou curar-me de tolo; agora sempre havemos de entrar n'uns ajustes. Se o homem não estiver cá por umas contas, não anda o filho de meu pae.
– Ora adeus! – disse o padre cura. – O conselheiro tem artes para o levar.
– A mim? Está enganado. Não querendo eu?Então você não me conhece. Em euembirrando, sou como um borrego teimoso.
– Quando se fala em estradas, já estou a tremer – disseum dos lavradores. – O que elles veem cá fazer é cortar-nos os campos, e a final não sei para que servem.
– Isso não é assim – atalhou o brazileiro, tomando uns ares cathedraticos, cheios de gravidade. – Vossemecê é ignorante e por isso é que fala d'esse modo.
– Eu digo… – tartamudeou, intimidado, o lavrador.
– Pois sim: mas não deve metter-se a falar em coisas que não entende. As estradas não servem para nada! As estradas são meios de communicação e… facilitam o… o… o trafego commercial e augmentam por conseguinte a riqueza das nações… Porque o trabalho representa um capital… sim, senhores, mas… mas um capital…sim… um capital morto… quero dizer um capital que não vive… Quero dizer… sim… supponhamos: o credito por exemplo… O credito… sim… ahi está o credito… Pois que é o credito?.. O credito é… é o credito… depende de muitas coisas… Por outra, supponhamos… se nós não tivessemos estradas… Uma supposição… Partamos de um principio. A producção excede o consumo… Quero mesmo que o consumo exceda a producção… Sim, quero mesmo isso… Muito bem… D'ahi que resulta? Está claro que um desequilibrio. E depois?.. Depois, boas noites… Não havendo estradas… Ahi está que se diz por ahi que a livre exportação, que tal, que sim senhores… mais isto, mais aquillo… Pois não é assim. É preciso que se attenda tambem ás condições economicas dos povos. Sim… eu digo: O commercio deve ser livre… Muito bem… Em termos já se sabe…Mas… o commercio livre… a livre troca… entendamo-nos… É preciso clareza de ideias… Quando eu digo que… Ora supponhamos… supponhamos que não havia estradas… Os transportes eram mais difficeis e portanto mais caros… E se além d'isso os generos fôssem escassos e… Diz vossemecê, para que servem as estradas? Ora diga-me uma coisa, sr. Manoel, supponhamos que… os impostos indirectos… não precisamos de ir mais longe… os impostos indirectos… Sempre queria que me dissesse o que havia de fazer.
– Impostos, Deus me livre d'elles! – murmurouo lavrador, cujos instinctos trepidaram á palavra «impostos».
– Isso tambem não é assim… Deus me livre! Não se diz Deus me livre, porque a riqueza… a riqueza… sim, a riqueza não está na terra… isto é, a riqueza está na terra… mas é preciso o capital para a exploração… Percebe?.. Ou… supponhamos… por exemplo… Não… vamos cá por outro lado… Ha um deficit n'um orçamento… desce o preço das inscripções… Ora bem… Mas… supponhamos que ha boas estradas, etcoetera… A riqueza tende a augmentar… e… e… Emfim lá que as estradas são uteis, isso é que não tem questão.
Toda esta lenga-lenga economica foi escutada pelo auditorio com profunda attenção.
O brazileiro, assignante e leitor infallivel de varios periodicos politicos, conseguira, á fôrça de leitura, fixar na memoria certas phrases de artigo defundo, e acabára por convencer-se de que possuia grandes noções de sciencia politica. Em occasiões como esta dava uma sacudidela ao intellecto, e aquellas phrases como os variados objectos do interior de um kaleidoscopo, tomavam uma disposição tal ou qual, mais ou menos regular, e assim lhe saia uma dissertação, como essa que viram. Em permanente indigestão economica vivia este portento. A doença não é das mais raras entre politicos.
O sr. Joãozinho das Perdizes abriu desmesurada e ruidosamente a bôca, depois do discurso do brazileiro, e disse:
– Eu cá por mim não sei d'essas coisas. Não se me dava das estradas para poder ir á feira de Penafiel com menos trabalho, mas, já disse, que me não venham mexer na quinta; porque então teem que vêr.
– Pois está arriscado a isso – disse o brazileiro.
– Veremos, depois não se queixem. Temos a historia da papelada outra vez.
– Houve a ideia de levar a estrada pela Corredoura fóra, depois de tomar á esquerda pelo Castro e vir direito á Palhoça. Não tinha cruzes nem cunhos. Ia-me parte da propriedade.
– Ah! ah! ah! Tambem não gosta? Diga-me d'isso! – berrou o sr. Joãozinho.
– Não é não gostar, é que o traçado era pessimo.
– Não sei por quê.
– Só a expropriação da minha quinta por que preço não lhes ficava?
– Elles, para esses casos, lá teem umas leis a seu modo – notou o padre cura.
– E por onde ha de ir então a estrada?
– O outro traçado, que eu aconselhei ao engenheiro, parte da herdade do capitão-mór, faz um viaducto nos lameiros, atravessa o pinhal do Conego, passa o rio n'uma ponte e…
– Oh com os diabos; o que ahi vae!
– Não é tanto como parece; sendo as obras bem dirigidas… Até aos lameiros só tem a deita rabaixoa casa e o quintal do herbanario.
– Deitar abaixo a casa do herbanario! O pobre diabo rebenta de paixão, se tal fazem – disse, com certa commiseração, o sr. Joãozinhodas Perdizes, que tinha por o herbanario uma sincera affeição e respeito, n'elle excepcional, desde que lhe attribuia a cura de um typho que o tivera ás portas da morte, e de que o velho, dizia elle, o salvára, com uns cozimentos sómente d'elle sabidos.
– Ora adeus! Antes d'isso morre o homem de doidice. Está maluco de todo – redarguiu o brazileiro.
– Tambem está um bom magico, está – notou o padre.
– Quer não, que sabe mais do que todos os medicos – acudiu o sr. Joãozinho das Perdizes; a mim me livrou de uma maligna. Oh que excommungada!
E principiou a fazer a historia da sua doença.
Os lavradores concordaram em que o homem era sabedor; mas attribuiam-lhe mais mysteriosa sciencia, do que a da medicina.
– Pois a final por onde devia ir a estrada – continuou o brazileiro; – tinham ainda o campo dos Brejos do conselheiro, mas n'isso não se fala, já se sabe.
– Ora! pois está de vêr – concordou o padre.
– E o conselheiro não se ha de oppôr á expropriação da casa do herbanario, porque pelos modos elles não andam muito correntes – lembrou um lavrador.
– É verdade; por que seria aquillo? – perguntou outro.
– Elles em tempo eram muito um do outro; e são até aparentados; – explicou o brazileiro – e o velho ainda hoje é tratado com familiaridade pela gente do Mosteiro; mas julgo que o homem com aquelle genio exquisito que tem, disse algumas verdades ao conselheiro, por occasião de umas eleições, quando elle pôz as auctoridades a trabalhar por si, e o velho entendia que as coisas não iam bem assim.
– Pois, com os diabos, o Vicente herbanario vale mais do que vinte conselheiros e toda a familia, – exclamou o sr. Joãozinho, batendo outra punhada – e queira elle, que o tal senhor não põe mais o pé nas camaras, mandado cá pela terra.
– Eu gósto de os ouvir, – disse o padre – falam assim, mas em chegando a occasião, vão todos votar n'elle como carneiros.
O brazileiro encolheu os hombros e sorriu, como confirmando o dicto.
– Pois havemos de vêr o que será! – berrou o sr. Joãozinho. – Isso é consoante cá umas coisas.
– A falar a verdade – disse o Pertunhas – não tem pago muito bem ao circulo o nomeal-o ha tantos annos seu deputado; só essa teima agora em querer obrigar o povo a enterrar-se no cemiterio!
– Essa a falar a verdade! – disse um lavrador.
– Quero vêr se me hão de enterrar a mim! – disse ameaçadoramente o sr. Joãosinho, como se esperasse ainda depois da morte, impôr as suas vontades á fôrça de murros e de pragas.
– Deram-lhe para lhe dizer que fazia mal enterrar nas igrejas. É moda e acabou-se. D'antes enterrava-se lá toda a gente e não havia mais doenças do que agora – isto dizia o padre.
– Os romanos tinham as suas catacumbas – ponderou o mestre de latinidade, forçando as suas reminiscencias romanas.
– Vamos – ponderou o brazileiro, como quem vira pretexto de fazer novo discurso e como homem que punha acima dos despeitos a verdade scientifica. – O enterrar nas igrejas é anti-hygienico; porque os chimicos sabem que… o ar que não é puro… é mau para a saude publica. Ora os cadaveres… em putrefacção produzem uns vapores que corrompem o ar… Ha uns insectozinhos invisiveis que a gente respira… e vão para a massa do sangue e corrompem-a… e o resultado é a febre… porque a febre são os humores a ferver… como o vinho no lagar… e se sáem, muito que bem; e se não sáem, ficam retidos e azedam o corpo todo.
A theoria physiologica pathologica foi recebida com attenção igual á que merecera a economica.
– Tudo isso será assim, – disse o padre – mas o conselheiro faz aquillo por instigações das lojas maçonicas e dos pedreiros livres.
– Pois elle será tambem?.. – disse um dos lavradores, arregalando os olhos assustados.
– Ora que dúvida! Pois aquella gentinha é toda da sucia.
– Corja! – resmungou o sr. Joãozinho.
O brazileiro, que se filiára no Brazil na maçonaria, fez um discurso sobre os fins da sociedade, que ninguem entendeu; vendo, porém, que não calavam nos animos aquellas doutrinas, mudou repentinamente de rumo.
– Elle não será mação – disse d'ahi a momentoso padre – mas é vêr o que elle tem defendido nas camaras; queria roubar ás irmandades e ás freiras os bens que ellas possuem; appeteceu-lhe o exemplo do cunhado, que se encheu com a compra do Mosteiro; queria acabar com o santo sacramento do matrimonio; queria que cada qual seguisse a religião que muito bem lhe parecesse. Vejam que christão aquelle!
Estas novidades abalaram os lavradores, que formularam algumas palavras de censura.
– E tambem falou para acabar com os morgados e com os vinculos.
– A falar a verdade, os vinculos… – murmurou o sr. Joãozinho, que por vezes tropeçára nas disposições da antiga lei vincular, ao caminhar na estrada da dissipação; porém, recordando-se de um irmão que tinha, casado e pae de muitos filhos, que mal conseguia sustentar á custa de muito trabalho, a ideia da abolição dos morgados não lhe sorriu e exclamou com nova punhada: – Acabem lá com os morgados quando quizerem, que o que eu lhes digo é, que tem de se haver commigo quem quizer tirar-me um palmo de terra!
O padre cura continuou a tratar pouco christãmente o conselheiro.
O pae de Magdalena militára sempre, como já dissémos, nas fileiras do partido mais liberal, e por isso era-lhe em geral pouco affeiçoada a maioria do clero, que, entre nós, não espósa ardentemente aquellas ideias.
No principio da sua carreira parlamentar, cedendoao impulso do enthusiasmo juvenil, o conselheiro desenrolára desassombradamente a bandeira do partido progressista e pronunciára os mais absolutos artigos d'aquelle credo politico; liberdade era então o seu mote favorito; a liberdade do commercio, do ensino, da imprensa e dos cultos; as reformas consequentes nos codigos, a desamortisação e desvinculação da propriedade, tudo advogára com enthusiasmo, no tempo em que estas palavras soavam ainda como heresias aos ouvidos habituados á lettra de outro catecismo.
Com o tempo arrefeceu, porém, esse enthusiasmo; dissipou-se-lhe com o fogo da mocidade. Com quanto liberal ainda de convicção, ensinou-lhe a politica pratica a rebuçar em formulas mais ordeiras os seus principios doutrinarios, a contemporisar, e até quando as conveniencias, infelizmente, nem sempre as publicas, o pediam, a dar alguns passos de retrocesso e a transigir com o partido opposto.
Se o fizessem ministro não se arrojaria a transformarem projecto de lei nenhuma d'aquellas medidas por que pugnára nos seus primeiros discursos, e que tantas malquerenças lhe acarretaram então.
Já atraz dissémos, que o conselheiro era actualmente um espirito pouco apaixonado do ideal, respirava a atmosphera de desillusão e de scepticismo, em que nas grandes cidades se vive. Era um perfeito homem de côrte; tratava cordialmente os seus adversarios politicos, pedindo d'elles mercês e empregos para afilhados; fulminava-os ás vezes da tribuna e depois apertava-lhes a mão nos corredores das camaras e nas praças. Se o julgava vantajoso, pronunciava ainda uma d'aquellas phrases sonoras, uma d'aquellas sympathicas divisas de politica avançada, que no principio da sua carreira adoptára comsinceridade; mas não tinha já aos principios o amor preciso para cair, abraçado n'elles, dos degraus do poder, se algum dia os chegasse a subir.
Por isso os soldados rasos do seu partido, os politico sem abstracto, unicos para quem a politica é sempre ideal e logica, o taxavam de frouxo e tibio; e de gazeta na mão havia muito que lhe dictavam, do obscuro canto do paiz em que viviam, a estrada direita, de que elle, porém, a cada passo se desviava.
Apesar d'isso, o partido conservador e o reaccionario, julgando-o por os seus primeiros discursos, continuavam, de boa ou de má fé, a acoimal-o de impio, de republicano e de pedreiro livre.
O brazileiro entrou em dissertação a respeito de todas as medidas politicas a que alludira.
Segundo o costume, ninguem o entendeu.
Ia elle no mais enredado da sua meada oratoria, quando o som de um tropear de cavallos o interrompeu. Mestre Bento, que fôra espreitar á porta, voltou-se, exclamando:
– Elle ahi vem! ahi vem o conselheiro!
Todos se levantaram pressurosos para correrem á porta. O que mais de má vontade o fez foi ainda assim o brazileiro.
Dentro em pouco todos se descobriam. Parava á porta o conselheiro, que montava um soberbo cavallo branco, e ao lado d'elle Angelo, n'um pequeno baio de fórmas elegantes e olhar vivo.
O conselheiro cortejou com affabilidade palaciana os seus amigos e patricios, dizendo a cada um uma phrase lisonjeira, que dissipou quasi todo o effeito da conversa que descrevemos.
Depois, fazendo signal ao filho de que podia seguir para casa, dispoz-se para entrar na venda.