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XII
Concordamos em acceitar eu o convite de uma amiga d'ella, que, todas as semanas convidava a jantar.
– Ahi nunca vae muita gente – disse ella – poderás facilmente ligar-te comnosco.
Comnosco!.. Era a primeira vez, que, n'uma só palavra, ella associava comsigo innocentemente o marido, sem dar fé da angustia que esta alliança me causava. Querida Fanny! eu sentia-me empallidecer sob uma oppressão indefinivel, e ella purpureava-se de contentamento. Depois d'aquella palavra, terrivel para mim, e sem valor para ella, ergueu-se. Tinham decorrido as duas horas. Separamo-nos. Com ella foi a confiança; comigo ficou a esperança horrivel.
XIII
Sim, esperança horrivel! porque eu não sei exprimir o que reluctava em mim de duvida, anceio, e azedume meditando que ia vêl-a emfim sob os olhos de quem lhe governava a vida.
Tudo isto se misturava em meu coração como venenos e contra-venenos, e d'esta abominavel mistura, fumavam vapores d'um travor tal, que eu me sentia na cabeça latejar o cerebro, e os joelhos vergavam sob mim.
Isto nada era, comparado ao que eu devia experimentar n'essa estreitissima meza, onde á claridade dos globos, nenhum conviva poderia esconder os pensamentos que lhe franzissem a fronte. Ao principio, nada vi, e respondi ao acaso ás perguntas que me fizeram. Comia machinalmente. Esforçava-me por ser attencioso e polido; mas denotava mais inquietação que o assassino que se vê em risco de ser descoberto.
Atordoado pelo tinido dos copos, pelo estrepito da baixella, pelo atrito das porcelanas, pelo reverbero das luzes nas tampas brunidas das terrinas, pelo vai-vem dos creados pressurosos que serviam, sem dizer palavra, e se moviam sem rumor d'um passo, como sombras negras de luva branca; e suffocado pela athmosphera calida da sala impregnada de evaporações penetrantes, misturadas com o odor do vinho e o das flôres, eu não olhava Fanny, nem mesmo a escutava. Tornou-se-me insopportavel a par de mim a presença d'ella: era como um peso que me abafava.
E tambem o não encarava a elle, elle, que eu viera procurar, de tão longe, com o desejo e terror de conhecel-o. Inceguecido por visões funebres, eu não podia vêl-o, com quanto elle estivesse defronte de mim.
De repente recobrei a minha lucidez sentindo um pé de mulher rossar o meu, e comprimil-o brandamente. Era ella a prevenir-me da minha preoccupação visivel de mais. Dirigi-lhe um lanço d'olhos agradecido; e, encostando-me ao espaldar da minha cadeira, contemplei detidamente aquelle que mal sabia que possante interesse ingendrára em mim o estudo da sua pessoa.
XIV
Era uma especie de touro com face humana. De estatura mediana.
Quando comia, atirava para diante, as espaduas robustas, e a cadeira gemia sob a gravosa flexão dos seus encontros quadrangulares. Eu via-lhe do meu logar, na testa, os arcos carregados das sobrancelhas hirtas de cabellos grossos, e abaixo fulgurava-lhe um olho pardo e luzidio d'aquelle brilho metalico que reluz na pupila impassivel dos carnivoros.
Comia, ás mãos juntas, mãos carnudas e curtas, e levantava os cotovêlos para melhor pezar sobre a faca brilhante, e sobre o cabo do garfo. Entre cada prato respirava largamente, limpava a boca, e bebia a longos sorvos grandes copos de vinho estreme.
Não tinha má cara, nem vulgar. O aspecto era de força. Todo elle denotava pujança extraordinaria de musculos. A superficie das faces e queixo perfeitamente escanhotado, apparentava regidez marmorea, e a fronte rasgada, limpida, cercada de cabellos negros já betados de russas, revelava um espirito de vontade cheio de rectidão e persistencia.
Era affectuoso o sorrir d'elle, e o olhar desmalicioso, porém claro como cristal. Incarava-vos de face, nos olhos, de um modo tal, que vos julgarieis felizes, evitando esse espelho de aço incommodativo á força de franco. O que elle tinha era dar cascalhadas estridorosas, repuchando em sacões os peitoraes acima da cintura apertada, e descompondo para traz a cara vermelhaça. Era grave e sonora a sua voz; o gesto tranquillo, e um pouco sombrio. Tinha bonitos dentes, unhas rosadas, brilhantes e bem feitas; em fim, dominava n'aquelle todo um ar de inteireza e aceio.
Pareceu-me ter quarenta annos.
Primeiro, ao vêl-o, fiquei como humilhado: corri-me de entrar em rivalidade com natureza tão possante. Involuntariamente me confrontei com elle, eu, a par d'elle tão franzino, como o seriam quasi todos os rapazes da minha idade. O que havia em mim de debilidade nervosa, e fineza de raça, e de elegancia, amesquinhava-se em comparação d'aquella riqueza de sangue, pujança de fórmas, e virilidade fria e pacata. Eu era como um sylpho contemplando, assombrado, a estatua d'um gigante. Ao pé d'elle que homem era eu? Forte e gentil expressão de homem era sómente elle, eu não.
E, mais cruel ainda para commigo mesmo, passava depois a comparação de mim para ella. E, vendo-a sentada ao meu lado, dôce e loura como Eva, candida como uma virgem, com aquella cintura de fada, e aquelle colo requebrado em languor, e todo aquelle ar de timidez que lhe impanava a face adoravel como a sombra d'um vapor… vendo-a assim, e tão delicada no pensar, perguntava-me, eu, phrenetico, como é que ella poderá amar tal homem? Violenta associação de duas naturezas que entre si não tinham um ponto só de contacto! Irmanavam-se com a seda e com o ferro!
Oh! Desdemona! – me dizia eu – que Othello escolheste! Mas mal sabia Fanny que furor raivava ao seu lado! Dirigia-me placidamente a palavra, olhando-me com ar de simples, e affastando com sua mão alvissima os louros anneis que lhe volteavam como plumas sobre a fronte. E fallava-lhe a elle, sem turvação nem embaraço… e dizia-lhe: meu amigo, deante de mim.
E elle, com menos embaraço ainda, lhe respondia, todo attenções e deferencia, com ar, porém, de grande superioridade.
O Hercules via n'ella um ser perigrino, mas absurdo: e por isso o que lhe dizia eram bagatellas, com ar amavel e paternal, como os pais as dizem aos filhinhos curiosos.
XV
Terminado o jantar, e passados os convivas á sala grande, e sentados em redor das bancas do whist, avisinhei-me lentamente de Fanny que aquecia os pés ao fogão.
Encostei-me ao rebordo da chaminé; e, com palavras de ternura que lhe dizia a meia voz, intrometti coisas frivolas ditas em voz alta. Deste logar via eu as costas dos jogadores inclinados sobre as bancas em que flammejavam as velas, involtas dos seus quebra-luz, e incravadas em magnificos castiçaes de prata; ouvia o ruido dos tentos de madre-perola, e o murmurio dos equivocos que os parceiros se trocavam. Cuidava eu que estariamos assim a seguro de reparos, com alguma astucia, até porque a dona da casa fôra para o fundo da sala dedilhar no teclado do piano. Novo encanto unido a outros tantos era aquelle dos accordes ondeando o ar, a um tempo que as secretas melodias do amor, mais melodiosas ainda, cantavam em nós. Porém, separando-se do grupo dos jogadores junto ao qual até então estivera de pé, o meu rival dirigiu-se a nós com semblante gracioso, e o mais natural possivel, e perguntou-nos em que fallavamos. Com melindrosa urbanidade, que excluia todas as maneiras familiares e nos distanceava um do outro, mas com serena voz e ares cortezes, entrou elle a dirigir a conversação e eu não pude deixar de acompanhal-o.
Por entre as melodias da muzica, e a ternura das vibrações, de que elle não dava fé, fallou-me de caça, theatros, cavallos, que sei eu! não deixando mesmo de entrar no amago dos assumptos banaes que eu imprudentemente escolhêra, mas que o interlocutor me condemnava a repetir, como se elle os julgasse unicos dignos de mim.
Dei-lhe duas ou tres respostas bastante arguciosas, e elle applaudiu-as com os olhos, honrando-me com um gesto de assentimento.
Assim pois que era eu para elle um instrumento assaz futil com cujas cordas brincava rossando-as com as pontas dos dedos. Se elle soubesse que em meu coração havia uma d'aquellas cordas, cujo som horrivel podia restrugir-lhe nos ouvidos, e insurdecêl-o!
Mais tarde, vi-o assentado ao lado d'ella, na sombra que fluctuava em redor do clarão dos castiçaes. Sem me vêr a mim, nem a outrem, nem a ella, apertava-lhe machinalmente a mão, scismando talvez em não sei que. E eu, contemplava aquillo, como o mais estranho e monstruoso dos espectaculos. Em quanto a ella, fixando os olhos nos meus, estava livida como uma estatua de marfim; mas não ousava balbuciar, nem fallar, e consentia.
XVI
Desde essa noite, uma só preoccupação me dominou – dissipar do meu cerebro a imagem do que vira. Quiz, á custa de tudo, esquecer aquillo que me humilhava e esmagava o coração. Como eu me castigava do que fizera! Absurda cubiça de conhecer o que ella tão de siso me escondera, e que eu devia ignorar sempre!
– Oh! não – me dizia eu – nunca mais ouvirei fallar deste homem temivel; nunca mais lhe encontrarei os olhos dominantes; nunca os nossos halitos hão-de encontrar-se na atmosphera da mesma sala; nunca mais, deante de mim, ha-de a mão d'elle apertar a tua, ó mulher serena e docil!
Tres dias depois, quando veio a minha casa, não viu ella em mim mudança alguma. A colera, a pouco e pouco, enchera-me de suas fezes a alma; mas dôr era esta que simulava a quietação da paz.
Com apparencias de socegado, sentia-me ferido de morte. Golpeado no coração, conservava o meu aspecto antigo, como aquelles fructos escarlates cuja pele fina e tenra cobre carne que devora um verme invisivel. E assim, de nada suspeitou Fanny. Todavia, como eu lhe fallava d'ella, de mim, de tudo em summa, excepto do que mais a preoccupava, Fanny parecia esperar anciosa. Por ultimo, no extremo da minha contrafeita eloquencia, propellido pelo anceio de vingar-me d'uma dôr nunca experimentada e cuja causa innocente ella era, lhe disse com amargura:
– Tu queres saber o que eu penso de teu marido, e talvez que te dês por venturosa se o juizo que esperas não lhe fôr desfavoravel. Mas, Fanny, tu nunca has-de saber o sentimento que elle me inspira.
Pareceu-me que, ao ouvir-me estas palavras, todo o sangue do coração lhe refluiu á face. Pobre mulher conciliadora! tanta alegria em chamar-me a sua casa, para me vêr mais a miudo, para me unir a todos os entes doces e queridos que lhe decoravam o coração!..
– D'onde vem essa mudança, Roger? – murmurou ella com penoso esforço.
«D'onde vem?!» exclamei eu infurecido… mas vi-lhe então o rosto innundado de lagrimas; e logo, cahindo a seus pés, abraçando-a pelos joelhos, disse-lhe brandamente:
«É que eu sou horrivelmente desgraçado, Fanny!.. É porque me devoram ciumes…
Ergueu-se de subito, como estupefacta, sem me repellir. Reteve-me ajoelhado, pesando-me sobre os hombros com as mãos: eu permanecia de joelhos, sem a comprehender. Fitou-me por largo espaço, profundamente, explorando os intimos arcanos de minha alma inquieta. Depois ergueu ligeiramente os hombros; e, baixando-se para me apertar a face ao seio, exclamou:
«Filho, meu pobre e querido filho!»
E desde ahi, não tornou mais a fallar, por si mesma, neste assumpto.
Eu, porém, pensava n'elle incessante e dolorosamente, sem poder abster-me de o recordar. Affagava-me então ella, e reprehendia-me. «Perdes o tempo» – dizia-me, sorrindo-me, e abraçando-me, se me eu detinha muito na exposição das minhas tristezas. E seus braços se me inroscavam no pescoço com ameigadora volupia, com a fascinação dos olhos me violentava a olhal-a, com graciosa e morbida ternura collava aos meus seus labios. Mas tudo em vão. Já se não franziam meus labios para saborear beijos d'amor; agora era o confrangerem-se soluçando gemidos.
XVII
Desde este funesto dia comecei a soffrer grandes torturas. A imagem daquelle homem incrustara-se-me na memoria, e, por mais que eu fizesse, não havia dilil-a de lá. Póde ser que aos olhos de toda a gente fosse elle ridiculo, mas aos meus não cuidei que o fosse. Para mim, era sinistro, terrivel, e, cada noite, espavorido, via-o, em sonhos, trucidar carniceiramente o espectro da minha felicidade.
O feliz era elle, que tudo ignorava. No drama começado por transportes de amor, e agora prolongado a travez de anciedades, terrores, desespêros, não representava elle: tão prudentes tinhamos nós sido!
Atroz mudança de papeis! Era eu que tinha ciumes d'elle! O espoliador soffria da posse pela posse. Não lhe restava mesmo o recurso de excitar as suspeitas do espoliado para o fazer aquinhoar das torturas!
E era-me força desconfiar e occupar-me d'elle!
A meu pesar, para evital-o, cumpria-me ser ardiloso como a lebre. Este papel de fugidiço, de temorato, degradava-me ao livel dos covardes. Meu Deus! se eu a não amasse!..
Em comparação dos males que deviam vir, aquelles nada eram. Principiava a caminhar n'uma senda espinhosa, cavada de abysmos, e não sabia que flagellações me urgia supportar antes de chegar ao termo. Desde então, se deante do fogão, no meu quarto silencioso, eu tentava divertir a alma da dôr presente, levando-a ás memorias de amores passados; ou esporeando á redea solta o meu cavallo, arriscava cem vezes a vida para quebrantar o corpo de fadiga, a fim de reverter sobre elle a fadiga de meu cerebro, ou se pedia á orgia o esquecimento, bebendo a grandes tragos o vinho que nunca me valeu uma gota d'agua do Léthes; ou se, n'um só lanço de azar, expunha os meus haveres para soffrer sequer uma sensação diversa daquella que eu execrava; ou, se emfim, envolvido nos cortinados da minha alcova, eu passava as minhas noites inteiras a lastimar-me, invocando os phantasmas dos seres adorados que perdi: nunca, nem no sonho, nem no perigo, nem na embriaguez, nem no jogo, nem ainda na remeniscencia da minha mãe morta, eu pude conseguir estrangular a serpente que me atassalhava o coração. Comigo, a visão fatal sorria aos meus amores juvenis; comigo, cavalgava ella o meu cavallo espantado; zombeteando, molhava ella os labios palidos no meu copo; no copo do jogo fazia ella o tilintar dos dados; comigo, emfim, meditava ella em minha mãe. Á flôr de minhas recordações todas, scenas incantadoras, affectuosas, terriveis, que eu restaurava com a memoria, do fundo de minha alma, surdiam incessantemente outras lembranças, outras imagens que espancavam aquellas.
E não havia remedio senão acolher aquellas abominaveis lembranças; affrontar de rosto com aquellas funestas imagens, porque era a isso violentado; venciam-me, e eu então, encarava-as!
Havia ahi alguma coisa horrida, humilhadora, e angustiadissima.
Só quem ama póde formar idéa vaga de minhas agonias. Era tudo claro e patente: nenhum refugio para a duvida! E eu me reprezentava a mulher amada, linda, elegantemente vestida, meiga, candida, assentada ao angulo do fogão em sua sala, ou á meza, no logar de honra, em face de seu marido, rodeada de amigos, e filhos. Affavel sempre, com attenções delicadas para todos, attenções que são a magica linguagem da graça do coração. E para o dominador mais carinhoso que para os mais! Era-lhe forçoso prevenir suspeitas de homem tão prespicaz: como não seria ella carinhosa? E, a de mais, entre elles existia a communidade de tantas coisas – interesses, filhos, viverem juntos, a toda a hora, alegres ou tristes, sem nunca se apartarem!.. E quantas expansões naturaes!.. Era elle o leão dominador daquella adoravel existencia; e eu, o lobo temido, e salteador, de olhar ferino, esbaforido, que, de tempo a tempo, a risco de perigos mil, exposto a humilhações degradantes, a uma bala, o roubava nas trevas, em quanto elle dormia, alguns restos do seu quinhão.
Oh! era isto o que me humilhava muito; mas aqui vereis o que me fazia pedaços o coração. Eu não podia suspender o trabalho indefesso de minhas evocações. Completava-as, ruminando minhas dôres, com satanico prazer. Então se mudava a scena, e figurava-se-me Fanny, por noite, só por só com elle, depois da saida dos filhos, na alcova fechada, onde o chá fumegava nas chavenas, ao suave clarão da lampada, ao pé do lume que docemente crepitava nas cinzas quentes. E ella a olhal-o com aquelles mesmos olhos que eu amava tanto! E a conversar com elle, amavel, facil, fallando pouco para lhe deixar o prazer de fallar, submissa como convém á mulher quando é formosa, e o dominador é forte. E não cuideis que eu ficasse n'estas imagens de seductora intimidade.
Não podia. Continuava-as, exaggerava-as… que sei eu!.. ajuntava-lhe outras. Era forçoso que assim fosse, assim devia ser. Era tarde, agonisava a chamma no fogão obscuro, a lampada mortiça abafava os seus lampejos no quebra-luz, callavam-se todos os rumores na casa e na rua; o passo sonoro do caminheiro retardado, marcava a hora do repouso e do prazer. De mais, meninos e creados, tudo estava na cama. Estavam elles sosinhos. E eram esposos!..
XVIII
Chegado até este ponto, tornava-me pallido. No mais recondito de minha alma, alguma coisa se estorcia e agonisava em convulções desesperadas. Estas imagens, evocadas cada noite, tornavam-me mais desgraçado, que se eu tivesse visto a mulher adorada cuspida em minha presença. Erguia-me, e via as horas; depois, despregava a rir, como doido, ou, involvendo a cabeça nos braços, lançava-me a chorar sobre o leito.
XIX
De madrugada emergia do meu pesadelo, mais quebrantado que o ferido d'um tétano.
E se me arrastava á janella, para aspirar um pouco de ar puro, a mesma pergunta me desabrochava nos labios calcinantes como flôr venenosa:
Por que o amou ella n'outro tempo? Que ella o amou, já m'o disse; foi por elle tirada á familia que a não queria ligar a um homem sem posição e sem riqueza. Enriqueceu depois, por que é energico e paciente. Sabe querer. Mas por que o amou ella? E, depois, por que me ama ella hoje a mim? Somos tão differentes um do outro!
Um dia, finalmente, á força de moer n'esta ideia, e joeirar-lhe no espirito os venenos todos, julguei que ia penetrar o proceder de Fanny. Lembrando-me quanto ella era sensivel ás caricias; figurando-me as scenas mais deleitosas do nosso amor, e comparando-me ao marido, invergonhei-me e alguma coisa mais acre que o desgosto, mais amarga que o despreso, mais peçonhenta que o odio, me subiu do coração aos labios.
– Ora ahi está por que ella me ama hoje – me disse eu sacudindo a cabeça. Veio depois auxiliar-me a analyse mais uma vez, mas para ferir-me covardemente com uma nova punhalada. – Ama-me para variar – disse eu amargurado – para satisfazer, um contrario exagerado, um desejo mais sentimental, mais delicado. A não ser para completar o seu ideal… accrescentei eu sem reflectir na crueldade da supposição.
Mas em tal caso – grito eu com terror indisivel – eu não sou para ella mais que metade d'um homem! Encho apenas metade d'um coração! Fui medido. Acharam-me incompleto. Sou escassamente uma addição! Não passo d'um complemento.
XX
Algumas vezes fugia de casa como d'um carcere, e ia espairecer minhas interminaveis meditações na multidão que peja os passeios. Achando-me entre pessoas felizes, indifferentes, occupadas; saboreando, a meu pezar, os primeiros effluvios balsamicos da primavera, cessava de julgar-me tão absolutamente miseravel, e classificava de creancice as mais monstruosas hallucinações – É o ciume – dizia – que me torna absurdo. Encontrando a cada passo tantas mulheres bonitas, elegantes, pelo braço de cavalheiros, os quaes com ar de aborrecidos, volteam os olhos em deredor, e escassamente lhes respondem, accrescentava eu: – Quantas mulheres habitam sob as mesmas telhas com seus maridos, sem repararem n'isso! Ao cabo de quatro annos de intimidade, o marido converte-se em amigo, e nem sempre! É de toda a gente, menos de sua mulher…
Mas logo vinham as duvidas a mortificar-me, cada vez mais pungitivas, e eu debalde a repelil-as de meu espirito. Que farte me conhecia eu para saber que não poderia jámais adquirir o espirito de conformidade com o meu seculo que permitte ao amante d'uma mulher cerrar a mão de seu marido, amigo só que seja! Além d'isso, eu não queria cortejar esse dominador, nem ajustar-me aos seus caprichos, nem tornar-me para elle o homem indispensavel. Eu vaticinava – se as suspeitas alguma vez o molestassem – quantas semsaborias me seria preciso fazer, quantas mentiras engenhar, quantos desgostos e aviltamentos supportar para destruil-as. E para aviltamento já bastava! D'aqui avante não passo – protestava eu – já é de mais o lamaçal do meu caminho.
Mais cançado e inquieto que na sahida, voltava para casa. Os sorrisos da primavera faziam-me vontade de chorar. A mornidão da atmosphera ingravecia-me no cerebro os pensamentos. O espectaculo, e sussurro das multidões ao longe, tornavam ainda mais incomportavel o silencio da minha soledade.