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Assim, minha prima, devorando o espaço e a distancia, foi elle, o nobre animal, abater-se á alguns passos apenas da praia; a coragem e as forças só o tinham abandonado com a vida, e no termo da viagem.
Em pé, ainda sobre o cadaver d'esse companheiro leal, vi á cousa de uma milha o vapor que singrava ligeiramente para a cidade.
Ahi fiquei perto de uma hora, seguindo com os olhos essa barca que a conduzia; e quando o casco desappareceu olhei os frocos de fumaça do vapor, que se ennovelavam no ar, e que o vento desfazia á pouco e pouco.
Por fim, quando tudo desappareceu, e mais nada me fallava d'ella, olhei ainda o mar por onde havia passado e o horizonte que a occultava aos meus olhos.
O sol dardejava raios de fogo; mas eu bem me importava com o sol; como meu espirito os meus sentidos se concentravam em um unico pensamento: vêl-a, vêl-a em uma hora, em um momento, si possivel fosse.
Um velho pescador arrastava n'esse momento sua canôa á praia.
Approximei-me e disse-lhe:
– Meu amigo, preciso ir á cidade, perdi a barca, e desejava que você me conduzisse na sua canôa.
– Mas si eu agora mesmo é que chego!
– Não importa; pagarei o seu trabalho, e tambem o incommodo que isto lhe causa.
– Não posso, não, senhor; não é lá pela paga que eu digo que estou chegando; mas é que passar a noite no mar sem dormir não é lá das melhores cousas; e estou cahindo de somno.
– Escute, meu amigo…
– Não se canse, senhor, quando eu digo não, é não: e está dito.
E o velho continuou á arrastar a sua canôa.
– Bem, não fallemos mais n'isto; mas conversemos.
– Lá isto como o senhor quizer.
– A sua pesca rende-lhe bastante?
– Qual! rende nada!..
– Ora diga-me! Si houvesse um meio de fazer-lhe ganhar em um só dia o que póde ganhar em um mez, não engeitaria de certo?
– Isto é cousa que se pergunte?
– Quando mesmo fosse preciso embarcar depois de passar uma noite em claro no mar?
– Ainda que devesse remar tres dias com tres noites, sem dormir nem comer.
– N'esse caso, meu amigo, prepare-se, que vai ganhar o seu mez de pescaria; leve-me á cidade.
– Ah! isto já é outro fallar; porque não disse logo?..
– Era preciso explicar-me?!
– Bem diz o dictado que é fallando que a gente se entende.
– Assim, é negocio decidido. Vamos embarcar?
– Com licença; preciso de um instantinho para prevenir á mulher; mas é um passo lá e outro cá.
– Olhe, não se demore; tenho muita pressa.
– É n'um fechar dos olhos, disse elle correndo na direcção da villa.
Mal tinha feito vinte passos, parou, hesitou, e por fim voltou lentamente pelo mesmo caminho.
Eu tremia; julgava que se tinha arrependido, que vinha apresentar-me alguma nova difficuldade. Chegou-se para mim de olhos baixos e coçando a cabeça.
– O que temos, meu amigo? perguntei-lhe com uma voz que esforçava por tornar calma.
– É que… o senhor disse que pagava um mez…
– De certo; e, si duvida… disse levando a mão ao bolso.
– Não, senhor, Deos me defenda de desconfiar do senhor! Mas é que… sim, não vê, o mez agora tem menos um dia que os outros!
Não pude deixar de sorrir-me do temor do velho; nós estavamos com effeito no mez de Fevereiro.
– Não se importe com isto; está entendido que quando eu digo um mez é um mez de trinta e um dias; os outros são mezes aleijados, e não se contam.
– É isso mesmo, disse o velho rindo-se da minha idéa; assim como quem diz um homem sem um braço. Ah!.. ah!..
E continuando á rir-se, tomou o caminho de casa e desappareceu.
Quanto á mim, estava tão contente com a idéa de chegar á cidade em algumas horas, que não pude deixar tambem de rir-me do caracter original do pescador.
Conto-lhe estas scenas e as outras que se lhe seguiram com todas as suas circumstancias por duas razões, minha prima.
A primeira é porque desejo que comprehenda bem o drama simples que me propuz traçar-lhe; a segunda é porque tenho tantas vezes repassado na memoria as menores particularidades d'essa historia, tenho ligado de tal maneira o meu pensamento á essas reminiscencias, que não me animo á destacar d'ellas a mais insignificante circumstancia; parece-me que si o fizesse separaria uma parcella de minha vida.
Depois de duas horas de espera e de impaciencia, embarquei n'essa casquinha de noz, que saltou sobre as ondas, impellida pelo braço ainda forte e agil do velho pescador.
Antes de partir fiz enterrar o meu pobre cavallo; não podia deixar assim exposto ás aves de rapina o corpo d'esse nobre animal, que eu tinha roubado á affeição do seu dono, para immolal-o á satisfação de um capricho meu.
Talvez lhe pareça isto uma puerilidade; mas a senhora é mulher, minha prima, e deve saber que, quando se ama como eu amava, tem-se o coração tão cheio de affeição, que espalha uma atmosphera de sentimento em torno de nós, e inunda até os objectos inanimados, quanto mais as creaturas, ainda irracionaes, que um momento se ligáram á nossa existencia para realisação de um desejo.
IX
Eram seis horas da tarde.
O sol declinava rapidamente, e a noite, descendo do céo, envolvia a terra nas sombras desmaiadas que acompanham o occaso.
Soprava uma forte viração de sudoeste, que desde o momento da partida retardava a nossa viagem; lutavamos contra o mar e o vento.
O velho pescador, morto de fadiga e de somno, estava exhausto de forças; a sua pá, que á principio fazia saltar sobre as ondas como um peixe o fragil barquinho, apenas feria agora a flôr da agua.
Eu, recostado na pôpa, e com os olhos fitos na linha azulada do horizonte, esperando á cada momento ver desenhar-se o perfil do meu bello Rio de Janeiro, começava seriamente á inquietar-me da minha extravagancia e loucura.
Á proporção que declinava o dia e que as sombras cobriam o céo, esse vago inexprimivel da noite no meio das ondas, a tristeza e melancolia que infunde o sentimento da fraqueza do homem em face d'essa solidão immensa de agua e de céo, se apoderavam do meu espirito.
Pensava então que teria sido mais prudente esperar o dia seguinte, para fazer uma viagem breve e rapida, do que sujeitar-me á mil contratempos e mil embaraços, que no fim de contas nada adiantavam.
Com effeito, já tinha anoitecido; e, ainda que conseguissemos chegar á cidade por volta de nove ou dez horas, só no dia seguinte poderia ver Carlota e fallar-lhe.
De que havia servido, pois, todo o meu arrebatamento, toda a minha impaciencia? Tinha morto um animal, tinha incommodado um pobre velho, tinha atirado ás mãos cheias dinheiro, que poderia melhor empregar soccorrendo algum infortunio e cobrindo esta obra de caridade com o nome e a lembrança d'ella.
Concebia uma triste idéa de mim; do meu modo de ver então as cousas, parecia-me que eu tinha feito do amor, que é uma sublime paixão, apenas uma estupida mania; e dizia interiormente que o homem que não domina os seus sentimentos é um escravo, que não tem o menor merecimento quando pratica um acto de dedicação.
Tinha-me tornado philosopho, minha prima, e de certo comprehenderá a razão.
No meio da bahia, mettido em uma canôa, á mercê do vento e do mar, não podendo dar largas á minha impaciencia de chegar, não havia sinão um modo de sahir d'esta situação, e este era arrepender-me do que tinha feito.
Si eu podesse fazer alguma nova loucura creio piamente que adiaria o arrependimento para mais tarde: porém era impossivel.
Tive um momento a idéa de atirar-me á agua, e procurar vencer á nado a distancia que me separava d'ella; mas era noite, não tinha a luz de Hero para guiar-me, e me perderia n'esse novo Hellesponto.
Foi de certo uma inspiração do céo ou o meo anjo da guarda que me veio advertir que n'aquella occasião eu nem sabia mesmo de que lado ficava a cidade.
Resignei-me, pois, e arrependi-me sinceramente.
Dividi com o meu companheiro algumas provisões que tinha trazido; e fizemos uma verdadeira collação de contrabandistas ou piratas.
Cahi na asneira de obrigal-o á beber uma garrafa de vinho do Porto, bebendo eu outra para acompanhal-o e fazer-lhe as honras da hospitalidade. Julgava que d'este modo elle restabeleceria as forças e chegariamos mais depressa.
Tinha-me esquecido que a sabedoria das nações, ou a sciencia dos proverbios, consagra o principio de que de vagar se vai ao longe.
Acabada a nossa magra collação, o pescador começou á remar com uma força e um vigor que me reanimaram a esperança.
Assim, docemente embalado pela idéa de vêl-a e pelo marulho das ondas, com os olhos fitos na estrella da tarde, que ia sumir-se no horizonte e me sorria como para consolar-me, senti á pouco e pouco fecharem-se-me as palpebras, e dormi.
Quando accordei, minha prima, o sol derramava seus raios de ouro sobre o manto azulado das ondas: era dia claro.
Não sei onde estavamos; via ao longe algumas ilhas: o pescador dormia na prôa, e resonava como um boto.
A canôa tinha vogado á mercê da corrente: e o remo, que cahira naturalmente das mãos do velho, no momento em que elle cedêra á força invencivel do somno, tinha desapparecido.
Estavamos no meio da bahia, sem poder dar um passo, sem poder mover-nos.
Aposto, minha prima, que a senhora acaba de dar uma risada, pensando na comica posição em que me achava; mas seria uma injustiça zombar de uma dôr profunda, de uma angustia cruel como a que soffri então.
Os instantes, as horas, corriam de decepção em decepção; alguns barcos que passáram perto, apezar dos nossos gritos, seguiram seu caminho, não podendo suppôr que com o tempo calmo e sereno que fazia houvesse sombra de perigo para uma canôa que boiava tão levemente sobre as ondas.
O velho, que tinha accordado, nem se desculpava; mas a sua aflicção era tão grande que quasi me commoveu; o pobre homem arrancava os cabellos e mordia os beiços de raiva.
As horas corrêram assim n'essa atonia do desespero. Sentados em face um do outro, talvez culpando-nos mutuamente do que succedia, não proferiamos uma palavra, não faziamos um gesto.
Por fim veio a noite. Não sei como não fiquei louco lembrando-me que estavamos á 13, e que o paquete devia partir no dia seguinte.
Não era unicamente a idéa de uma ausencia que me afligia: era tambem a lembrança do mal que ia causar-lhe, á ella, que, ignorando o que se passava, me julgaria egoista, supporia que a havia abandonado, e que ficára em Petropolis divertindo-me.
Aterrava-me com as consequencias que poderia ter esse facto sobre a sua saude tão fragil, sobre a sua vida; e me condemnava já como assassino.
Lancei um olhar hallucinado sobre o pescador, e tive impetos de abraçal-o e atirar-me com elle ao mar.
Oh! como sentia então o nada do homem e a fraqueza da nossa raça tão orgulhosa de sua superioridade e do seu poder!
De que me serviam a intelligencia, a vontade, e essa força invencivel do amor, que me impellia e me dava coragem para arrostar vinte vezes a morte?
Algumas braças d'agua e uma pequena distancia me retinham e me encadeavam n'aquelle lugar como á um poste; a falta de um remo, isto é, de tres palmos de madeira, creava para mim o impossivel; um circulo de ferro me cingia, e para quebrar essa prisão, contra a qual toda a minha razão era impotente, bastava-me que fosse um ente irracional.
A gaivota, que frisava as ondas com a ponta de suas azas brancas; o peixe, que fazia scintillar um momento seu dorso de escamas á luz das estrellas; o insecto, que vivia no seio das aguas e plantas marinhas, eram reis d'essa solidão, na qual o homem não podia siquer dar um passo.
Assim, blasphemando contra Deos e sua obra, sem saber o que fazia nem o que pensava, entreguei-me á Providencia; embrulhei-me no meu capote, deitei-me e fechei os olhos, para não ver a noite adiantar-se, as estrellas empallidecerem e o dia raiar.
Tudo estava sereno e tranquillo; as aguas nem se moviam; apenas sobre a face lisa do mar passava uma aragem tenue; que dir-se-hia o halito das ondas adormecidas.
De repente pareceu-me sentir que a canôa deixára de boiar á discrição e singrava lentamente; julgando que fosse illusão minha, não me importei, até que um movimento continuo e regular convenceu-me.
Afastei a aba do capote e olhei, receiando ainda illudir-me; não vi o pescador, mas á alguns passos da prôa percebi os rolos de espuma que formava um corpo agitando-se nas ondas.
Approximei-me, e distingui o velho pescador, que nadava, puxando a canôa por meio de uma corda que amarrára á cintura, para deixar-lhe os movimentos livres.
Admirei essa dedicação do pobre velho, que procurava remediar a sua falta por um sacrificio que eu supunha inutil: não era possivel que um homem nadasse assim por muito tempo.
Com effeito, passados alguns instantes, vi-o parar e saltar ligeiramente na canôa como temendo acordar-me; a sua respiração fazia uma especie de borborinho no seu peito largo e forte.
Bebeu um trago de vinho, e com o mesmo cuidado deixou-se cahir n'agua e continuou á puxar a canôa.
Era alta noite quando n'esta marcha chegámos á uma especie de praia, que teria quando muito duas braças. O velho saltou e desappareceu.
Fitando a vista nas trevas, vi uma claridade, que não pude distinguir si era fogo, si luz, sinão quando uma porta abrindo-se deixou-me ver o interior de uma cabana.
O velho voltou com um outro homem, sentáram-se sobre uma pedra e começáram á fallar em voz baixa. Senti uma grande inquietação; na verdade, minha prima, só me faltava, para completar a minha aventura, uma historia de ladrões.
A minha suspeita, porém, era injusta; os dous pescadores estavam á espera de dous remos que lhes trouxe uma mulher, e immediatamente embarcáram e começaram a remar com uma força espantosa.
A canôa resvalou sobre as ondas, agil e veloz como um d'esses peixes de que ha pouco invejava a rapidez.
Ergui-me para agradecer á Deos, ao céo, ás estrellas, ás aguas, á toda a natureza emfim, o raio de esperança que me enviavam.
Uma facha escarlate já se desenhava no horizonte; o oriente foi-se esclarecendo de gradação em gradação, até que deixou ver o disco luminoso do sol.
A cidade começou á erguer-se do seio das ondas, linda e graciosa, como uma donzella que, recostada sobre um monte de relva, banhasse os pés na corrente limpida de um rio.
Á cada movimento de impaciencia que eu fazia, os dous pescadores dobravam-se sobre os remos e a canôa voava. Assim nos approximámos da cidade, passámos entre os navios, e nos dirigimos á Gloria, onde pretendia desembarcar, para ficar mais proximo de sua casa.
Em um segundo tinha tomado á minha resolução; chegar, vêl-a, dizer-lhe que a seguia, e embarcar-me n'esse mesmo paquete em que ella ia partir.
Não sabia que horas eram; mas ha pouco havia amanhecido; tinha tempo para tudo, tanto mais que eu só precisava de uma hora. Um credito sobre Londres e a minha mala de viagem eram todos os meus preparativos; podia acompanhal-a ao fim do mundo.
Já via tudo côr de rosa, sorria á minha ventura e gozava da alegre sorpresa que ia causar-lhe, á ella que já não me esperava.
A sorpresa, porém, foi minha.
Quando passava diante de Villegaignon descobri de repente o paquete inglez: as pás se moviam indolentemente, e imprimiam ao navio essa marcha vagarosa do vapor, que parece experimentar suas forças, para precipitar-se á toda a carreira.