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A SOCIEDADE ELEGANTE
Rodeiam a rainha o Figueiró e a Figueiró, e algumas relações intimas da Figueiró e Sabugosa; e o rei o Ficalho, alguns velhos em oficio na côrte, como o marquez d'Alvito, o conde de Villa Nova de Cerveira, que, ao que se disse, morreu por ser preterido pelo conde de Sabugosa, por influencia da rainha – o que é redondamente falso: D. Pedro de Noronha, vulgo o Paço d'Arcos, morreu de velho. Era um homem sem cultura, e tinha oitenta e seis annos quando foi preciso nomear novo mordomo mór por morte do Ficalho. Acompanham o rei no yacht o Fernando de Serpa, o Manuel Figueira, o Pinto Basto (Nico), o Malaquias de Lemos, o Queiroz, que passou por ser a alma danada do paço; e que na realidade tinha um certo geito para disciplinar soldados, montar a cavallo, dirigir esperas de touros – e mais nada; algumas vezes o major Santos, feitor da Bacalhôa, e o Soveral que, quando estava em Lisboa, era o menino bonito da corte, onde tinham influencia o Bernardo Pindella, o Caldeira, comandante do yacht, e poucos mais.
A seguir ao paço podem citar-se os Palmellas, em casa de quem se dava beijamão aos creados e ás creadas, se isto não é uma lenda como muitas outras… Era uma pequena corte. Ella, a duqueza, viveu sempre entre coisas bellas; elle, o duque, era um apagado guarda livros15. Só recebiam raros parentes, e a duqueza toda a vida detestou os Sousa Holstein. No tempo de D. Luiz ainda muita gente nobre mantinha uma grande linha, que se foi pouco a pouco apagando: os Penafieis que então fizeram uma vida brilhante; o marquez de Vianna cujo palacio se vendeu ao marquez da Praia. – Aquella gente nem sabe acender um lustre, dizia o velho marquez ao falar d'«esses morgadotes da ilha…» Os condes de Lumiares davam bellas festas no palacio quasi pegado, onde é hoje o do Marquez da Fóz. Abriam-se as janellas, apagavam-se os milhares de lustres e continuava-se a conversa ate á missa das almas na capella proxima.
Chamavam-se essas festas «rosas divinas». Debutou ahi, nas salas de Lisboa, o snr. Luiz de Soveral. No rez do chão do mesmo palacio davam pequenas partidas os Castellos Melhor. Tocava o seu amigo Bomtempo e juntavam-se alguns politicos, entre os quaes o Manuel Vaz Preto. No fim do reinado de D. Luiz já a maior parte dos palacios de Lisboa ou tinham sido alugados ou mudado de dono. No palacio de Tancos estava o colegio do dr. Sicuro; nos dos viscondes de Asseca instalou-se o visconde de Ouguella e depois uma fabrica; o dos condes de Murça transformou-se n'uma escola; o do marquez de Abrantes – que ocupava apenas um recanto – foi alugado pela legação da França; o dos condes Barão, no largo do mesmo nome, passou a uma familia de judeus, barão de Villa de Foscôa; o dos Almadas Carvalhaes, senhores d'Ilhavo, á Empreza Editora; no do conde da Ribeira, de quem o rei dizia que era o homem mais honesto do seu tempo, e que morava na casa dos Mordomos, instalou-se o colegio Arriaga. Já os Angejas, representados pelo conde de Peniche, tinham deixado o palacio de S. Lazaro, que depois ardeu, e o visconde de Sampaio mudára para a rua de S. Vicente. Os condes Valladares e Povolide haviam vendido ao snr. Burnay o palacio das Portas de Santo Antão e retirado para a provincia. O palacio dos condes de Paraty é hoje escola municipal, no dos condes da Ponte, á Boa Morte, habitou o general Palmeirim, e no dos condes de Farrobo móra o snr. Monteiro Milhões, que tambem comprou as Laranjeiras, vendidas depois successivamente até cahirem nas mãos do snr. conde de Burnay. O palacio dos Castellos Melhor passou ás mãos do marquez da Fóz, que alli deu algumas festas sumptuosas. Mas a mais brilhante, a que deixou grande impressão na gente da epoca, foi o celebre baile das Chagas, na antiga residencia, antes de mudar para o palacio da Avenida. N'esse baile se exhibiram todas as preciosidades que o marquez adquirira – quadros, baixelas Germain, etc. Romperam-se os tectos da sala de baile, para se construir uma galeria onde tocaram os musicos, acompanhados pelo côro de S. Carlos. Ahi começou tambem o marquez a arruinar-se. Gastou, gastou… Só as grades de ferro do corrimão do palacio da Avenida custaram noventa e cinco contos. O marquez chegou a ter cem contos de renda.
Muitas outras familias ilustres ocupavam, retiradas da vida mundana, os seus palacios: o conde de Alcaçovas, na rua da Cruz dos Poiaes, o marquez de Pombal na rua Formosa, os marquezes de Penalva, etc. Os condes de Sabugosa, n'uma residencia que o conde tornou encantadora, recebiam ainda com brilho. Na rua Formosa existia tambem o salão da snr.a D. Maria Kruz Brito, que no seu genero foi o unico comparavel aos salões da Restauração e 2.º Imperio, de Paris. Sua filha, a senhora condessa de Ficalho, no solarengo palacio dos Mellos de Serpa, aos Caetanos, reunia a fina flor da elegancia em certos dias da semana (segundas-feiras). É o palacio ainda hoje ocupado pela senhora D. Maria de Mello, condessa de Ficalho. O destruido e inhabitavel palacio da Rosa, solar dos viscondes de Villa Nova de Cerveira, marquezes de Ponte de Lima, resurgiu pelos esforços do actual marquez de Castello Melhor, visconde da Varzea pelo seu casamento com a herdeira das casas Castello Melhor e Ponte de Lima, e alli se deram e dão esplendidas festas.
Citam-se como as mulheres mais lindas d'essa epoca – fim do reinado de D. Luiz e principio de D. Carlos – a duqueza de Palmella, a condessa de Penamacôr, a condessa de Ficalho, a condessa de Villa Real e Mello, e a formosissima D. Anna de Sousa Coutinho, filha do Conde de Linhares, portanto neta da Senhora Infanta D. Anna de Jesus Maria, dama da rainha, e pelo espirito, pelo talento, a condessa de Rio Maior (mãe), a marqueza sua nora, filha dos marquezes de Bemposta Sub-Serra (Saint Leger) e tantas outras sumidas ou desaparecidas no turbilhão da vida.
Uns pobres, outros mortos, outros arredados, deram logar a esta sociedade mais mesclada, a gente de dinheiro, a gente que enriquece, alguns nobres de mistura, alguns fidalgotes feitos á ultima hora, e a uma certa roda que se diverte, citada nos jornaes, e que constitue em toda a parte o que se chama a sociedade elegante. Uma senhora de espirito dividia a sociedade portugueza em aristocracia, smart set, alto pirismo (pirismo, é claro, vem de Pires), baixo pirismo e povo. «Esta ideia veio-me – diz ella – d'uma visita que recebemos um dia e que muito nos impressionou: num grupo d'automobilistas do Monte Estoril nossos conhecidos, tinha vindo a F… aquelle sitio apartado á beira-mar, onde já o nosso pae costumava passar o verão, uma menina da boa sociedade de Cascaes. Essa menina, dizia minha irmã cheia de extranhêza, que nunca tinha vindo áquella casa, esteve durante toda a tarde exclusivamente a namorar um dos taes automobilistas, e nem antes nem depois nem nunca, esboçou para com os donos da casa um leve sorriso de agradecimento! Porquê n'uma menina tão fina tanto «falta de chá!..»? Porquê, entre ellas, e as meninas finas nossas conhecidas com mais intimidade, tamanha diferença?.. Foi assim por comparações estabelecidas e deduções tiradas, que concluimos em dividir as classes da sociedade actual em aristocracia, smart set, alto pirismo, baixo pirismo e povo.
É inutil explicar o que se entende por aristocracia e povo. Cada uma dessas classes, no seu extremo oposto, está suficientemente definida por sua propria natureza. Baixo pirismo é nome novo para a baixa burguezia, classe de que tanto, com tanta graça, e tanta verdade, se ocupou Gervasio Lobato. Alto pirismo… alto pirismo, somos nós, por exemplo, as manas da descoberta, muito bem acompanhadas por todas as nossas amigas e por quasi todos os nossos conhecimentos, mais ou menos endinheirados (ha de tudo!) de maior ou menor bom gosto e cultura. Classe numerosissima, em que está incluida toda a boa gente que cuida de ser bem educadinha e agradavel e que trata de sustentar, por um alevantado valor civico – que muitas vezes é inconsciente…! – as regras, os preconceitos, as convenções, de que uma sociedade bem organisada não pode prescindir.
Ha alguns grupos no alto pirismo, muitissimo agradaveis – se n'elle incluimos tanta gente!.. – em que se cultiva ainda a boa conversa, em que, sem sombra de pedantismo, se discutem livros, ideias, arte, e em que ninguem sente saudades de jogar o bridge. Mas ha outros grupos, em que nas festas os homens não estão na mesma sala em que estão as senhoras, festas em que só dança, e pouco, a gente muito nova, e em que as meninas, nada interessantes, mas com aquelle ar de timidez e de recato, que tanto agrada aos portuguezes á volta d'uma viagem pelo extrangeiro, namoram pelos processos archaicos, sob os olhares mais ou menos adormecidos da mamã. Festas essas em que, a alturas tantas, nós, com a certeza absoluta de que o relogio está parado, começamos a sentir verdadeiro odio pelas begonias artificiaes – ainda se encontram! – que ornamentam a étagère, e que cresceram em leque de dentro d'uma especie de musgo sêco, muito mal imitado; festas em que só pela muita fôrça da boa educação recebida nos obrigamos a trocar umas palavras vazias de interesse por uma contorsão dificil e dolorosa do corpo, com a senhora gorda que está sentada no borne atraz de nós! (Tambem ainda se encontram muitos bornes!!)
São estes grupos do alto pirismo, é preciso dizer a verdade toda, que nos enchem precocemente a cabeça de cabelos brancos.
A smart set (cá está a tal menina que apareceu na F…) foi certamente organizada em Cascaes. Deve ter nascido na Parada… – e foi fundada provavelmente por um pequeno grupo de aristocratas neurasthenicos e comodistas, aos quaes logo, muito contentes, se agregaram por facilidades de convivencia e porque os souberam imitar, alguns membros do alto pirismo. Hoje é uma classe bastante numerosa e certamente a mais chic. Distingue-se das outras por varias coisas; por exemplo: desprezo absoluto pela prudente instituição do «chaperon» (esses entreteem-se com o bluff) – desprezo absoluto pelas boas maneiras, pela cortezia corrente (só se cumprimentam as pessoas que passem perto e essas mesmas com marcada indiferença) – ignorancia completa das regras da gramatica (isso seria «falar dificil»!) e da orthographia. Cultivam só o corpo diplomatico e a religião; vestem bem, jogam muito, dançam muito e bem, e flirtam na perfeição. Votaram ao ostracismo algumas palavras que nós dizemos e que são pessidonias como: chavena, trem, pharmacia, carnaval etc. etc. etc. Tratam-se todos por «você»; alguns teem muita piada e usam todos um ar muito chateado. (É da praxe, o calão.) A smart diverte-se… mas não sabe sorrir».
Esta sociedade, que anda todos os dias nos jornaes, vem do alto até baixo, da aristocracia ao povo, forma uma lista infindavel, tem um chronista celebre, o snr. Luiz Trigueiros, e pode ser vista ás tardes no Dia e de manhã no Diario Nacional. Dessa lista destaca outro informador algumas senhoras: Branca de Gonta Colaço, poetisa distincta, voz de ouro, herdada do pae, bonita a valer e sempre apaixonada pelo marido, o artista Jorge Colaço; Magdalena Trigueiros de Martel Patricio, pequenina, vivissima compleição d'artista, gostos aristocraticos, fazendo versos em francês e d'uma alegria comunicativa; Elisa Baptista de Sousa Pedroso, pianista eximia, sempre em concertos, em recitas de caridade, em festas que dá em sua casa e onde reune uma sociedade mesclada de artistas, diplomatas, aristocratas e politicos; Sarah da Motta Vieira Marques, voz rica e sciencia no cantar, só rivalisando com a sciencia de receber: o seu salão pode considerar-se um dos poucos refugios dos ultimos dez annos, no dizer dos seus amigos; Adelaide Coelho da Cunha, esposa do director do Diario de Noticias, grande organisadora de festas, no seu palacio a S. Vicente de Fora, festas dramaticas d'uma grande riqueza de apresentação e mise-en-scêne; a malograda Ada Weinstin, a esposa do conhecido banqueiro, recitando maravilhosamente, vestindo com suprema distincção, bonita, elegante, cheia de charme; Candida da Nova Kendall, formosura triumphante, que passou pela sociedade lisboeta como um meteoro louro, cantou como um rouxinol, e voou para terras da Santa Cruz, sua patria: ella a bem dizer tinha duas patrias: Bahia-Paris; Alda Decken Lino, figurinha de madona, de bandós negros e olhos transparentes, mulher do architecto Raul Lino; Maria Emilia Macieira Lino, cantora e organisadora de soirées artisticas com representações de autos de Gil Vicente; Alice Munró dos Anjos, dando festas na sua casa da Praça dos Restauradores, onde se dança alegremente, presididas pelas suas filhas, a linda condessa de Arnoso e a simpathica condessa de S. Lourenço; Luzia Patricio de Balsemão, grande linha de elegancia, certa em todas as premiéres; Irene Gilman, filha de Thomaz Ribeiro, loura, inteligente, maliciosa e dançando maravilhosamente; Christina Rezende da Silva, d'uma belleza e elegancia patricias; Elisa Baerlein; Conceição de Carvalho, filha de Mariano, organisadora de festas artisticas, para que escrevia peças, em casa de seus sogros os Viscondes de Carnaxide, bonita e intelligente; Zulmira Franco Teixeira, pequenina, d'uma requintada elegancia, fazendo versos, como sua irmã a condessa de Almeida Araujo, etc. etc.
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A sociedade lisboeta tinha dois pontos principaes de contacto – Cascaes e o theatro de S. Carlos. Era ahi que os ricos, ou os que aparentavam, procuravam impor-se a certa roda, que dificilmente os recebia.
De 1880 para cá as emprezas succedem-se em S. Carlos como os ministerios progressistas e regenerador e Valdez disputa com Freitas Brito a vinda a Lisboa das grandes celebridades. Se Valdez traz Masini, Patti, Devriés, Vidal, Castel Mary, Devoyod, Cotogni, a tragica Ristori, a Regina Pacini, Novelli, de Bassini, que passou por amante d'uma rainha (vêr Fialho), os irmãos Andrades, etc.; Freitas Brito apresenta Varesi, Gayarre, Rapp, irmãos De Reskée, Navarrini, Tetrazzini, Theodorini, Gabrielesco, Nevada, Kaschmann, Sarah Bernhard, Marini, Ristori, Salvini, Rossi, Desreins, Sherie, Belincioni, Ferrani Darclée, Tamagno, Borghi Mamo (Herminia), baritono Aldighieri, Pandolfini, Saloni, Arkel, maestro Gula, Delman, tenor De Marchi, Morconi, Sarasate, e tantos outros. Os partidarios de Freitas Brito pateavam sempre na epoca de Valdez, os de Valdez na epoca de Freitas Brito – o que não os impedia de se juntarem em jantares semanaes, a que assistiam os dois emprezarios… A estas duas emprezas segue Paccini, que faz fortuna. Foi n'essa epoca que S. Carlos se transformou n'um grande salão. Vem a Lisboa os reis e presidentes de republicas. O numero de recitas augmenta, a assignatura augmenta. Paccini dá cincoenta recitas de assignatura, vinte e quatro extraordinarias e doze extraordinarissimas, a que o publico chama dos Sebastiões, e no palco desfilam Belincioni, Krucinisky, De Lerma, Renaud, Tita Ruffo, Lassalle, etc., etc. Segue-se Anahory, com a carruagem, o charuto, Wagner – e o desastre.
Ahi está todo o mundo literario e elegante, nos camarotes ou na plateia, toda a Lisboa como se diz nos jornaes: Carlos de Freitas Jacome, antigo diletanti, e que se julgava pae da Patti, Freitas Rego, o Principe Negro, conquistador irresistivel, D. Luiz da Camara, o conde de Mesquitella e Antonio de Brito, que formavam um grupo, de que Bordallo fez tres medalhões para distribuir pelos assignantes de S. Carlos; Joaquim Pessoa, do Diario de Noticias, apaixonado da Baresi; José Saragga, critico do Jornal do Commercio; o phantastico Eduardo Cheira; Mr. Garaty e mulher, assignantes chronicos de S. Carlos, elle muito baixo, ella muito alta; dr. Patrocinio, professor de mathematica, com uma paixão assolapada pela cantora Pasqua; Antonio da Costa e Silva, um dos mais elegantes rapazes de Lisboa; Alfredo Anjos, enamorado da Devriés, e que na noite do seu beneficio lhe mandou compor um deslumbrante jardim natural para o 3.º acto do Fausto; Francisco da Fonseca Benevides e esposa, o auctor da «Historia do Theatro de S.Carlos» (recitas impares n'uma frisa, recitas pares n'uma torrinha), Freitas Branco, Silva Canellas, Jayme Arthur da Costa Pinto, que foi director da sociedade lyrica que se fundou em S. Carlos com o Paccini pae; Motta Marques, que casou com a cantora Meccoci; May Figueira, o exotico marquez de Franco e Silva Carvalho, todos tres adoradores do corpo de baile; Custodio Borja, José Bacellar e Ottolini da Veiga, com mania de canto e voz de basso– e que, d'uma vez, corrido pelo publico, a quem fizera um manguito, fugiu no comboio para o Porto, ainda vestido de frade, com o fraque enfiado por cima – Eduardo Cordeiro e Augusto Ribeiro, enorme e sempre com muitos calos; Dantas Baracho; Eduardo Tavares; Espregueira e mulher n'uma frisa; José Martinho da Silva Guimarães; o Guerra, pae das meninas Guerras; o barão da Regaleira, Antonio Duarte da Cruz Pinto, Agostinho Franco, José d'Alpoim, Rufino d'Almeida, o padeiro gordissimo de S. Carlos, etc., etc. e n'uma torrinha, que ficou na tradição, a 115, o Antonio Manuel Teixeira, depois secretario de S. Luiz de Braga, o Luiz Campeão e o Oliveira, chamado das cautelas de 25: era d'ahi que partiam sempre os aplausos ou as pateadas monumentaes.
Nos camarotes e nas frizas as lindas sobrinhas do marquês de Franco, Falcarreras; a lindissima baroneza da Regaleira; e a mais bella mulher de todos os tempos, já velha e sempre decotada, a duqueza de Avila e Boiama; Espregueira, que foi a primeira que se apresentou com vestidos sem hombros, ostentando magnificos collares de brilhantes; Moreira Marques; a condessa de Figueiró; a condessa de Taveira, acompanhada pelo marido, sempre de casaca com botões amarellos; a condessa d'Edla, o gentilissimo pagem do Baile de Mascaras, – da cantora a rainha – ; Poitier, loira ideal, que casou com o filho de Monteiro Milhões; a duqueza de Palmella; a condessa de Alferrarede; a condessa de Alverca; a viscondessa de Idanha, e a de S. Luiz de Braga etc. etc. e no camarote de bocca de 3.ª ordem n.º 70 – esta Lisboa foi sempre monumental! – a Antonia Moreno com as suas espanholas, pilar do estado, necessario e decerto muito mais util que a Junta de Credito Publico. Essa mulher acabou deixando por testamenteiro Frederico Arouca, que repudiou a fortuna que ella lhe legou, e depois de passar para alguns camarotes brazonados de fresco uma ou outra das suas mais lindas pupilas…
«Cascaes, com a adjacencia dos Estoris, – diz-me um frequentador – era a côrte na intimidade, em robe-de-chambre, mais faceis as relações, mais accessiveis e amaveis, tu cá, tu lá. Quasi tudo gente do rei, que ia para lá cedo, por meiados de setembro, cansados de Cintra onde D. Carlos raro pernoitava, fugindo, a pretexto de tudo e de nada, á convivencia da rainha e da Figueiró. A separação do rei e da rainha, segundo me informaram, porviera de certa dama, que lançou entre elles a sizania. Conheci-a ainda linda e elegante, um pouco roliça, de olhos aveludados e labios vermelhos: nos ultimos annos engordára, e banalisara-se. Tinha a furia do dominio, e rodeava-a uma côrte de gente em que ella mandava e da qual fazia parte um diplomata mais tarde em evidencia. Passava por ter relações anormaes com a rainha… O marido pouco esperto, só tinha como ideal ser ministro plenipotenciario e par do reino.
Em Cascaes, a rainha não se vulagrizava. Saía a cavalo emquanto poude montar. Tinha varizes nas pernas, – informou um dia o D. Afonso. No meu tempo não passeava de barco, passeava de carruagem, descendo ás vezes para andar a pé. Dava as suas recepções á tarde, principalmente em vespera de festa, para serem apresentadas pessoas que desejavam ir aos bailes, e que em Cascaes mais facilmente obtinham o convite e a apresentação preliminar indispensavel, que o conde da Ribeira, quando estava de serviço, facilitava extraordinariamente. A Figueiró voltava para Cintra logo que acabava serviço.
O D. Carlos fazia vida hygienica de madrugador, tirava photographias, pintava ligeiramente algumas marinhas, sentindo o mar. Logo de manhã, saía de carro ou a cavalo, com chuva ou com sol (demorava-se até meiados de novembro em Cascaes), ou ia á procura de senhoras que elle perseguia. Tivera, pelo menos um anno, n'uma vila do Mont'Estoril, uma amante, mas isso não o dispensava de querer que o julgassem homem de boas fortunas. Escrevia a miudo a outras damas, em caligraphia disfarçada, cartas em prosa e verso á mistura, quasi sempre em francez. Eram muito tolas. Vi algumas e podia ter guardado uma, que rasguei. Serviam-no dois alcoviteiros ilustres, que o faziam encontrado com as mulheres que lhe agradavam. Outro chegou a dar um baile, para que o rei conhecesse uma senhora da burguezia media atraz de quem andou annos.
Iam ao Sporting Club, mais conhecido pela Parada, jogar o tennis. Não havia escolha nos pareceiros. O almirante Capelo, o explorador, ficava com o sobretudo do rei no braço, emquanto elle jogava. D. Carlos era um timido, falava pouco, nunca olhava de frente: seus pequenos olhos claros evitavam sempre os dos outros.
A Parada era a capital do reino de Cascaes. Ahi se reunia a flor da aristocracia e o ingresso não era facil, como socio. Só nos ultimos tempos é que o Tompson, a quem chamavam moço fidalgo, facilitou a entrada. Aos domingos davam-se salsifrés á noite, e todos os annos um grande baile, a que assistia o rei, que distribuia os parceiros e dançava uma contradança. A rainha, se ia, não se demorava. Nos dias de semana, poucas pessoas lá estavam, preferindo os casinos á beira-mar, principalmente o Estoril.
O rei, todas as tardes, ia para a Boca do Inferno e quedava-se ali, se encontrava algumas senhoras que o interessassem. Por isso chegaram a chamar ao D. Carlos o balão cativo…
O rei mal recebia os ministros, de que se desfazia logo que lhe era poss O rei mal recebia os ministros, de que se desfazia logo que lhe era possivel. Não se demoravam em Cascaes, não os convidava para assistir, sequer, ás partidas. Teve d'uma vez, como hospede, o Soveral. Não lhe conheci nenhum outro.
O D. Afonso ia cedo para o Monte Estoril, para a vila sobre o mar, que ali possuia a mãe. Descia a praia, com uma grande simplicidade de maneiras. Falava pouco, era bom rapaz, e a maior manifestação intelectual que lhe conheci foi anti-clerical*. Vestia-se sumariamente: uma camisola azul, casaco e calça da mesma côr e bonet. Assim andava, de manhã até á noite. Ás vezes ia ao mar, e os barqueiros gostavam d'elle. Nunca tinha vintem. Os ajudantes ou oficiaes ás ordens não lhe emprestavam dinheiro, porque sabiam que elle não lhes pagava.
Não era dado a senhoras – preferia as outras… Certa condessa é que conseguiu ser amante d'elle, porque conhecia todas as maneiras de conquistar um homem. Deu um baile para que convidou o infante e a fina flôr. O marido estava encantado. Nenhuma moral em nenhum d'elles. Elle era muito cioso da sua nobreza e gostava de parecer. Ella queria gozar a vida. O A… que foi seu amante, contou-me que em Madrid ella dissera d'uma vez ao marido, que não tinha um ceitil quando casou: «Tu, para chulo, és caro de mais!»
Em Cascaes era dificil chegar a vias de facto com uma mulher. Meio pequeno, coscovilheiro, maldoso, maldizente. Não se falava senão nesta ou naquella, em escandalos, repetindo-se os ditos de ouvido para ouvido ou acentuando-se as infamias. A M… foi apanhada no pinhal dos Olivaes n'uma atitude equivoca… A S… faz namoro descarado ao rei… Mas as coisas arranjavam-se para Lisboa. Vinham ao dentista, ás compras, etc. A forçada e grande intimidade estabelecida, de manhã na praia, á tarde na Boca do Inferno, onde toda a gente ia, apezar do vento e da poeira, na Parada ou á boquinha da noite no passeio Maria Pia, junto á cidadela, onde ás vezes fazia uma ventania infernal, á noite nos casinos, ou nalguma partida de bridge, a vida quasi em comum e os namoros travados, o ar do mar que desiquilibra os nervos e torna os amores exigentes, fizeram tecer muitas aventuras escandalosas. Um ainda fugiu a tempo com a mulher, que já madura, esteve em vesperas de cair… Nunca mais voltou a Cascaes.
As ceias nos bailes eram pugnas. Vi isso até no Paço. Uma descendente de D. João IV, vi-a eu agarrar-se a um bufete, com unhas e dentes. Em certas casas, as ceias nunca chegavam. Uma madrugada, num baile do M… chegou a iniciar-se a lucta… A alta sociedade era, em regra, pelintra. As grandes familias tinham gasto as fortunas, e muitas não queriam, ou não podiam, dar bailes. Só tinham dividas. Não era possivel deixar d'ir a S. Carlos e de satisfazer outras exigencias. Havia-os com actrizes com dezasseis annos de assignatura… As ceias nos bailes eram pugnas. Vi isso até no Paço. Uma descendente de D. João IV, vi-a eu agarrar-se a um bufete, com unhas e dentes. Em certas casas, as ceias nunca chegavam. Uma madrugada, num baile do M… chegou a iniciar-se a lucta… A alta sociedade era, em regra, pelintra. As grandes familias tinham gasto as fortunas, e muitas não queriam, ou não podiam, dar bailes. Só tinham dividas. Não era possivel deixar d'ir a S. Carlos e de satisfazer outras exigencias. Havia-os com actrizes com dezasseis annos de assignatura… Fóra o Palmella e poucos mais, não recebiam porque de todo não podiam. E, se o faziam, era sem-cerimonia. Não havia dinheiro! não havia dinheiro!
Descaiam muito os fidalgos, mas obstinavam-se sempre em parecer. Um oficial jogador e pae de uma serie de filhos, mandava a miudo incomodar D. Carlos… Todos os seus famulos lhe extorquiam dinheiro, quanto podiam. Choravam, punham-se de joelhos, contavam-lhe miserias reaes ou falsas. Tive, em Cascaes, semanas uma arca com prata para fugir a uma penhora iminente… Um grande fidalgo, no fim de algum tempo, despediu os creados – mas nunca pagou a nenhum. Outro chegou a não ter que jantar, porque o mercieiro não lhe fiava, ninguem lhe fiava, mas bebia todos os dias garrafas de champagne.
Havia mancebias antigas e tão respeitaveis, como o casamento, assim, por exemplo, F… e F… Já ninguem convidava uma sem o outro.
Quer que lhe fale tambem da gente que fingia de nobre, da burguezia vaidosa e que fazia mexerico para ser convidada? A mulher d'um grande industrial conseguiu entrar na casa d'um fidalgo, onde ia toda a gente, da grande e da baixa. Convidou-a para jantar, para o theatro e andava contente como um cuco. Um dia não a convidou mais. Chorou. Isto foi-me afirmado por uma amiga que o viu. Era uma dama, muito linda, com um soberbo colo, mas com o cerebro d'uma arara…»
Ahi fica o quadro levemente esboçado por um frequentador de Cascaes. Tudo isto é frivolo e tragico. Lembremo-nos que d'esta maledicencia, dos ditos d'estas boccas que sorriem, da ninharia e do encanto, se gerou parte da athmosphera donde devia sahir o descredito da rainha e o assassinato do rei.