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O MUNDO POLITICO
Novembro – 1918.
Os acontecimentos dos ultimos reinados afiguraram-se-me sempre faltos de logica e de nexo. Estão talvez muito perto de nós ainda: precisam de perspectiva que os coloque nos seus devidos logares. Só o historiador poderá crear mais tarde, com documentos e memorias, e certa aparencia de verdade, o romance da nossa vida. Nós, por ora não sabemos nada, nem mesmo dar resposta plausivel ás perguntas que nos obsidiam… Porque foi, por exemplo, morto D. Carlos? É fora de duvida que até os monarchicos receberam com alegria a sua morte. «Não vi lagrimas» – diz Julio de Vilhena. Eu avanço mais: só vi aplausos. E no entanto já hoje se pode afirmar sem erro que D. Carlos não foi morto pelos seus defeitos, mas pelas suas qualidades. Respirou-se! respirou-se! – o que não impede que, a cada anno que passa, esta figura cresça, a ponto de me parecer um dos maiores reis da sua dinastia. Já redobra de proporções e não se tira do horizonte da nossa consciencia. O rei tinha na verdade defeitos, mas – diga-se! diga-se! – não foram os seus defeitos que o mataram, foram as suas qualidades. Só o assassinaram quando elle tomou a serio o seu papel de reinar, e quando, com João Franco, quiz realisar dentro da monarchia o sonho de Portugal Maior. Foi esse o momento em que, talvez pela primeira vez na historia, os monarchicos aplaudiram um crime que os deixava sem chefe, e se abriram de par em par as portas das prisões, congraçando-se todos os politicos sobre os corpos ainda mornos dos dois desventurados.
O D. Luiz pôde ir até ao fim do seu reinado, porque elle proprio o disse – «um principe é um dissimulador». Mas D. Carlos é que não foi nunca um dissimulador. D. Carlos desprezava os politicos. Dizia: – Tu ouvel-os falar? Se lesses as cartas que me escrevem enchias-te de nojo. – Essas cartas existem… Na verdade toda a gente dizia mal da politica e desprezava os politicos: só elle os não podia desprezar. É authentico tambem que no seu desdem chegou a envolver o paiz. Toda a gente, desde o literato ao homem rude, dizia mal do paiz. Tempo houve em que foi moda dizel-o. Só elle não devia dizer mal do paiz. Realmente pediu muito dinheiro aos politicos, mas os politicos pediram muito mais dinheiro á nação, dando cabo d'elle com as suas clientelas. E ninguem lhes tomou nunca contas: todos morreram honrados. Hintze passou por ser um homem integro. José Luciano tambem. Pessoalmente decerto, mas com o que ambos elles esbanjaram reconstruia-se o paiz de alto a baixo. O partido regenerador tinha tal fama que se dizia em Lisboa: «quem não é regenerador é ladrão de si mesmo». Na realidade não havia a esse tempo – porque hoje tudo mudou de figura – senão um partido em Portugal capaz de sacrificios, o partido republicano: os outros, para me servir da phrase tão justa de Homem Christo, eram apenas «quadrilhas politicas». Ser politico em Portugal foi a mais rendosa de todas as industrias. «Logo que chega ao poder um chefe de partido não pensa senão em explorar o paiz em proveito das suas clientellas. O Estado é a preza dos politicos… Se eu podesse encontrar um homem integro que podesse modificar tudo isto dar-lhe-hia todo o meu apoio».
Parecia que o proprio paiz na verdade só queria comer: – Pedem tudo! pedem as maiores poucas vergonhas! – exclamava o Alpoim; e o dr. Antonio Cabral escrevia:
«No tempo da monarquia essa mesma maioria acomodaticia e pedinchona, só conhecia o caminho dos ministérios para ir importunar os secretarios de Estado com solicitações de empregos, de benesses, de estradas, de favores, até de escandalos. Não ia levar aos ministros uma ideia, um plano, a lembrança de um beneficio para o país. Ia procurar interesses, buscar comodidades, exigir condescendencias, sem se lembrar de que tudo isso custava, muitas vezes, dinheiro ao Tesouro Publico e só causava prejuizos á nação.
Depois, quando a tempestade bramia e as moscas varejeiras zumbiam em tôrno da montureira politica, essa mesma maioria, de larga guela e incomensuravel ventre, era a primeira a gritar contra as imoralidades que provocara, contra os atropelos da lei que impuzera, contra os êrros de administração que imperiosamente reclamara! Para essa maioria prudente… e de muito comer, os culpados de tudo – criminosos execrandos! – eram o Rei, os ministros, os deputados, todos, emfim, que tinham na mão as rédeas da governação publica. Ella, a maioria exigente e dificil de contentar, era inocente e de tudo lavava as mãos.
Ella, a maioria composta dos influentes, dos caciques, dos compadres, dos despoticos senhores do país, que hoje se encolhem, transidos de pavor, e então barafustavam do alto do seu pedestal de mandões; ella, a maioria que ordenava, que dispunha de votos, que sabia impôr-se com arrogancia – ella, de nada era culpada e escondia o rosto púdico na alva clamide de vitima dos maus politicos!..
Veiu, por fim, a queda no abismo, em que se evidenciou a traição de muitos e a incompetencia de tantos. A maioria dos portugueses, se não delirou de contentamento, remeteu-se ao cómodo e discreto silencio em que se comprazem os covardes e os maus cidadãos, para só os interromper com murmurios de reprovação, soprados nos centros de conversa contra os politicos… que ella empurrára para o mau caminho e ajudara a despenhar no precipicio.
Oh! a maioria dos bons cidadãos de larga pança!..»
Hintze e José Luciano tinham-se congraçado no reinado de D. Carlos, e só elles podiam tudo, só d'elles dependiam lugares, favores, vaidades e interesses. Antonio Cabral está certo que foi pelos seus meritos – que não são poucos – que chegou a ministro?.. Ai de quem lhes desagradasse. Ao irrequieto Fuschini entretiveram-no com as obras da Sé para o arredarem da politica; ao José Dias Ferreira, que foi dos raros homens de governo comezinho do seu tempo, nem sequer o ouviam nas camaras. Toda a gente lhe voltava as costas quando falava. Sabia-se que o Paço o detestava. O José Luciano e o Hintze sucederam-se, d'acordo, no governo do paiz e no governo do Credito Predial, com identico sucesso!
Ambos elles eram pessoalmente muito boas pessoas, ambos elles tiveram um fraco extraordinario pelos tratantes. O Hintze, o homem que não ri, o casaca de ferro, era um homem um pouco cansado e com um lindo sorriso para toda a gente: – Pois sim, pois sim… – Trato encantador. Nas camaras era vel-o! Ninguem apresentava assim as questões: tinha tudo catalogado, arrumado, disposto, e os papeis saltavam-lhe da carteira por arte magica. O José Luciano, mais bonacheirão e ao mesmo tempo mais caustico, conhecia como poucos os homens que lhe tinham passado em fita pelo salão da sua casa, com as suas vaidades, as suas miserias, os seus rancores e os seus vicios, e tocava-lhes sempre no ponto fraco. Pessoalmente honesto, – quem o duvida? – mas tendo cada vez mais imperiosa a necessidade de satisfazer clientelas cada vez mais sofregas – ambos acabaram de corromper o paiz, já meio corrompido, até á medula. Importa pouco que o snr. D. Luiz de Castro diga: «Hintze vendeu todo o seu patrimonio e o de sua mulher para servir o reino e o rei» (Dia, fevereiro, 1917). Sim, mas Hintze distribuiu a rodos o dinheiro da nação, principalmente depois da scisão João Franco, e colocou toda a gente a começar pelos seus16.
Não resistiu. Delapidou, principalmente depois da scisão João Franco, sem conta nem pezo nem medida. Anselmo Vieira diz: «José Maria dos Santos entregou á viuva do Hintze, no dia do enterro, 21 contos de lettras vencidas. Ora a questão do alcool entre o norte e o sul foi sempre adiada pelo Hintze, o que fez ganhar 300 contos ao José Maria dos Santos.» Na sua phrase pitoresca a politica portugueza estava condemnada porque era um regimen de validos e badamecos. E cita este e aquelle e aquelloutro, que, na sua opinião, e todos juntos, não valiam um estadista. O Hintze não resolvia um problema, arredava-o, e as complicações augmentavam sempre; se tinha a escolher entre dez homens, escolhia sempre o peor… O honradissimo capitão Machado, duro como o silex, chegou a par, porque, quando atacavam o José Luciano na camara alta, dizia sempre: – Viessem elles cá para os deputados e quem os ensinava era eu. – O pobre monsenhor inutil, que se chamou Santos Viegas, achou outro truc para o Hintze o elevar á mesma cathegoria: quando o chefe do partido regenerador falava, cahia n'um assombro, de que não havia arrancal-o!.. – «Chegaram a ministros seres destituidos de todo o miolo. O honradissimo Pequito, santissima creatura, foi um dia para uma comissão, a que o José Dias presidia, com o Contracto dos Tabacos, que elle só tinha assignado e mais nada. Havia um artigo redigido de forma que cincoenta milhões de francos ficavam encobertos, para se poderem pagar as dividas da Casa Real. José Dias pediu explicações, o outro embrulhou-se, José Dias insistiu, o outro ficou de bocca aberta, com cara de pasmo – até que o velho rabula lhe disse com soberano desprezo: – Comprehendo, comprehendo… o snr. ministro da fazenda precisa de ouvir os seus colegas para depois responder… – Se o José Dias tem deixado passar aquella trapalhada talvez D. Carlos não tivesse sido assassinado.»
A politica portugueza chegára a estar apenas nas mãos e dependente da vontade dos chefes. O José Luciano dizia: – O meu partido não é que me leva ao poder – sou eu que levo o meu partido ao poder. Dois homens e clientelas. Alguem se filiou jamais n'um destes partidos por principio, por ideal? ou foi por interesses, e, mais simplesmente, por simpathias pessoaes?
E assim a força desses dois homens chegára tambem a ser ficticia: – não provinha do paiz – provinha do rei… As camaras mero scenario; os discursos, as atitudes, theatraes: o que havia a decidir não se decidia alli. Tudo estava resolvido, preparado de antemão, nos salões, nas ante camaras, nos gabinetes ou nos corredores, entre os chefes. O resto era um espectaculo com as suas regras e os seus figurantes, absolutamente inutil – absolutamente falso – absolutamente fóra de toda a realidade…
*
As camaras… Por lá passou Junqueiro, que de lá sahiu um dia dizendo: – Vão áquella parte – ; por lá passou o grande, o pobre João de Deus, que nunca poude abrir a bocca, e outros homens ilustres. De lá sahiu Fuschini, que se foi embora fazendo-lhes um manguito, quando Arroyo n'uma sessão celebre lhe disse: – Ajoelhe a meus pés! – Oliveira Martins, exhausto de trabalho; o romantico Chagas, cujas ultimas palavras foram estas: – A vida é uma comedia. – Já não os ouvi, mas vi e ouvi ainda o pachydermico Antonio d'Azevedo Castello Branco, o esguio e taciturno Beirão, sempre alheado, o grande orador Antonio Candido, o canarim Elvino de Brito, que manejava a palavra como quem maneja um florete, e que o Hintze tratava d'alto, o anecdotico Baracho, cujos discursos não tinham fim, o Campos Henriques, lyrio pendente, o theatral Arroyo, o José d'Azevedo, o Eduardo Villaça tão amavel para todos, tão afavel que ficou para sempre o Villacinha, o Chanceleiros, com a sua grande gaforina branca, o severo e taciturno Dias Costa, que morreu de desgosto, tendo cumprido o seu dever como um soldado, a nobilissima figura do conde de Arnoso, que vejo sempre diante de mim, bradando por justiça, e que acabou envolto em treva, jungido á sua dor, o Jacintho Candido, um pouco apagado, mas resistente e teimoso, o João Franco, o decorativo Wenceslau de Lima, o Pimentel Pinto, do alto dos seus tacões, o Albano de Mello, tão admirador do José Luciano que chegou a ponto de se parecer com elle na atitude, na voz e até no rosto, e, na outra camara, a um lado o pitoresco conego José Dias, apopletico e jovial, lá das bandas de Monsão, o torrencial Oliveira Mattos, que, a primeira vez que falou, fez rebentar os cós das calças ao Chagas, que perguntava entre spasmos de riso: – Mas quem é este homem? onde foram buscar este homem? – e a quem ouço ainda invectivando o ministro da guerra: – Heroe de Trajouce! heroe de Trajouce! – os Cabraes, um polido e soturno, que o Hintze estimava, o outro, Antonio, de bigodes assanhados, como um galo de combate; o José d'Alpoim, impulsivo, terrivel na replica; o João Pinto dos Santos, um sistema de philosophia para cada caso futil do dia, já branco, de punhos solidos, e sempre o mesmo aprumo, a mesma linha, a mesma conducta; o Moreirinha, o Centeno, e o juiz Francisco Medeiros que pouco antes de morrer (estou a ouvil-o) me disse assim: – Tenho pena de não ter roubado como os outros… – E, diante do meu espanto, concluiu: – Quando morrer deixo a minha filha pobre e os outros estão ricos. – E a outro lado, o elegante, o frivolo conde de Paçô Vieira, o lustroso conde de Castro Solla, o Anselmo Vieira, sempre a debater finanças, sempre á espera das grandes ocasiões, sempre esquecido á ultima hora na lista do ministerio, o estrabico Dias Ferreira, falando baixinho para dois fieis que lhe restavam; o Matoso dos Santos, sempre enfronhado em algarismos, o Sergio de Castro, o D. Alberto Bramão e outros jornalistas da Tarde, o Schwalbach aparecendo, desaparecendo, atarefado, e tantos outros sumidos lá para o fundo na obscuridade e no silencio.
Juntem a este mundo o mundo dos jornaes, os meios politicos onde tudo se comenta e desfigura, e o mundo financeiro, com alguns tipos que é necessario anotar rapidamente: primeiro os Mosers e o Foz, predominando com o Mariano, a casa Torlades e outros grupos; a casa Burnay e o impenetravel Jonh, e, nos ultimos tempos da monarchia, a casa Wernestein, Alfredo da Silva e a casa alemã Ernest George. Entre essas figuras conheci uma d'um alto pitoresco: Gomes Netto, sem instrucção, mas d'um grande senso pratico. Não raro o encontravam em mangas de camisa no seu escriptorio. Escrevia em largos quartos de papel e depois dizia: – Ponham-lhe lá a gramatica! – Acabou já velho e amoroso, fazendo todos os dias compras de legumes e peixe, na Praça da Figueira, que depois ia distribuir de coupé por casa das amantes, pescada aqui, pescada alli… Juntem a isto as redacções dos jornaes, em forja rubra a certas horas da tarde ou da noite, os ditos, as noticias espalhadas, a côrte ao senhor conselheiro… Era peor o que se dizia do que o que se fazia… Era o descredito lançado sobre tudo e todos, a tal ponto que um dia, mais tarde, quando um juiz monarchico (Paçô Vieira) foi despachado para a provincia, o delegado disse-lhe muito a serio: – Mas como queria V. Ex.a que se sustentasse um regimen em que as filhas do José Luciano eram apalpadeiras da alfandega com cem mil reis por mez? – Nos comicios asseverava-se que a rainha D. Amelia comprava no estrangeiro vestidos por vinte e quatro contos. Peor, peor… Depois da republica o Eduardo Villaça encontrou-se com João Chagas em Paris e perguntou-lhe com ironia: – Então esses famosos inqueritos da republica, com que fizeram tanto espalhafato, não deram nada? – Ao que o outro, lépido, respondeu: – Vocês que querem? Tanto se acusaram de ladrões uns aos outros, que a gente acreditou…
*
– Um homem! um homem! – reclamava o D. Carlos. Um momento de hesitação e de duvida na sua vida… Dois caminhos na frente: um commodo e largo, de transigencias faceis, o outro perigoso mas util para o seu paiz. Decidiu-se pelo peor. Ia jogar a vida.
Elle era, como toda a gente, um mixto de qualidades e defeitos… Ha homens que se nos afiguram d'uma só peça. Desconfiem d'elles: andam mascarados… Timidez e orgulho. Todos dizem: – Era encantador. – Todos estão de acordo n'este ponto: ninguem o podia aturar. Um oficial afirma: – Tratava os politicos como lacaios, tratava a gente do povo com extrema bondade. – Um dia escreveu um bilhete nas costas do Hintze, que se curvou para lhe servir de secretária; outro dia, já a cavalo para uma ferra de touros, atirou com a capa a um velho general seu servidor: – Guarda lá isso! – D'outra vez dispoz o ministerio á chuva para lhe tirar o retrato. Tratava-os com desdem. Sacrificou sempre os homens que se lhe dedicaram, o Martins e o Mousinho, por exemplo. O Carlos Lobo d'Avila tinha-lhe dado uma formula que o lisonjeou e o deitou a perder. Era um valente. Escrevia cartas anonimas á mulher. Media tudo pela mesma bitola – e, se o deixam viver, tinha sido um dos maiores reis da sua dinastia. Acabou á bala, quando ia matal-o o figado: comia e bebia enormemente e pezava-lhe em cima esta tara: era filho d'uma histerica e d'um sifilitico. Este mixto, n'um homem inteligente como elle, só tem uma explicação: timidez e orgulho – timidez e orgulho…
Efectivamente resolver-se a luctar contra os interesses dos partidos e dos homens, desencadear paixões, era lançar-se n'um combate de que não podia esperar senão contrariedades e a morte. Salientaram-lhe logo todos os defeitos. Tudo que se fazia de mau era sempre o rei que o fazia. Obscureceram-lhe de proposito as qualidades. Esqueceram que D. Carlos colocara o paiz n'uma situação externa admiravel, e que os dois ou tres actos de homem d'estado do seu tempo lhe pertencem, como a unica acção grande da republica pertence a Bernardino Machado, que conseguiu levar as tropas portuguezas para a frente europeia – quando os inglezes reclamavam apenas o nosso esforço em Africa17. As viagens a Paris, a Berlim, a Londres corôam o anno de 1895. A aliança ingleza é um facto. Veem a Lisboa os grandes chefes d'estado. Vae começar uma grande época. Aponta a Africa a uma pleiade brilhante de oficiaes, que elle proprio incita, comprehendendo que o grande Portugal é outro, e que esta facha de terreno, com um clima agricola horrivel, só pode ser uma vinha e um logar de repouso e prazer. De lá, d'esse novo Brazil – dos extensos planaltos d'Angola, que duas vezes por anno produzem trigo – tem de nos vir o oiro e o pão. O resto é visão de pequenos estadistas de trazer por casa. Só elle concebe e incita. Só elle fala e sonha n'um Portugal maior, n'um Portugal esplendido. O plano estabelecido e iniciado, fecha-se com um ponto culminante: o tratado de commercio com o Brazil, que D. Carlos teve realisado, e que, ao que parece, tarde, dificilmente, ou jamais, se conseguirá. Foi este homem que assassinaram como ladrão a uma esquina de Lisboa…
Porque foi morto, afinal, o rei?.. Um velho philosopho meu amigo traduziu um dia toda a ancia contemporanea n'aquella grande phrase, que não me canso de repetir: – Nós tambem queremos comer… – Sómente para ser justo e completo, a uma verdade devia juntar outra verdade: – E não cabemos todos!
Não, os partidos não cabiam todos, não podiam caber todos, e estavam completamente desacreditados. A grande força de João Franco foi, na realidade, de protesto. E quem falhou, diga-se já, não foi o rei, foi João Franco; quem não esteve á altura do seu papel, não foi D. Carlos, foi o dictador. João Franco tinha atraz de si um partido pouco numeroso (as clientellas haviam de vir…), mas resistente, tenaz, entusiastico. Os franquistas de hontem são ainda hoje franquistas. Não perdem a fé, e nem agora nem nunca despegam um olho do Fundão, embora lancem o outro, com prazer, ironia ou desdem, sobre o ridente panorama da vida… É preciso que realmente esse homem disponha de qualidades excepcionais para conseguir tal poder de dominação. Era um impulsivo: grande fraqueza e grande força. Procurava os obstaculos para os dominar e gastou uma energia desmedida a resolver ninharias. Em Lisboa dizia-se com espanto: – Este homem só levanta carrapatas! – Ora caçava no seu terreno, ora no terreno dos republicanos. Homem d'estado, ia talvez ter ocasião de o mostrar – depois da morte do rei. Ahi é que era vel-o!.. Valente e calmo foi-o decerto. Vi-o eu n'uma ocasião grave da sua vida. Os republicanos (Ribeira Brava, talvez) tinham obtido a sua prisão logo depois do cinco d'outubro. De Cintra levaram-no para um gabinete da Boa-Hora. Cá fóra o França Borges, refestelado n'uma poltrona, gosava a sua vingança e o seu triumpho, separado do cacifro por uma porta escancarada. O juiz Meirelles e um delegado de pera ruiva e gravatinha vermelha, vinham de quando em quando trocar não sei que impressões com elle. Pela porta aberta vi o João Franco de pé, sereno e palido: parecia enorme, junto dos dois bonifrates. E quando o juiz lhe disse, acabado o interrogatorio: – É talvez melhor sahir por outra porta, porque o povo mata-o!.. – o homem teimou, o homem cresceu dois palmos: – Eu só saio por a porta por onde entrei. – Estava preso, obrigaram-o emfim a descer umas escadinhas, a meter-se ás escondidas no automovel, que o esperava na calçada que sobe quasi a pique para a Biblioteca, emquanto alguem – juro-o – prevenia a furiosa onda popular, que correu aos gritos de – morra! morra! – a esperal-o em baixo, á esquina. Um borborinho. Tiros de pistola. Dois marinheiros apontaram as espingardas, defendendo o automovel, que só a custo arrancou – emfim! emfim! – pela calçada acima. – Morra o João Franco!.. – E as vozes colericas gritavam: – Morra! matem-no!.. – Era este o homem, que, com o rei, estava em frente dos partidos progressista, regenerador, dissidente e republicano. Os ataques sucediam-se e agravavam-se. Os monarchicos, dificilmente sustidos pelos chefes, ameaçavam ingressar no partido republicano, que todos os dias ganhava em numero, cohesão e audacia. O proprio José Luciano perdia a serenidade:
«Ha uma coisa que aos governos nunca deve esquecer, que a lição da historia a cada instante repete: á revolução do alto, pode muito bem suceder que responda a revolução de baixo». (Correio da Noite, 14 de Maio de 1907).
«O presidente do conselho blazona e conta com o auxilio, sem duvida, poderoso e eficaz do Rei, e zomba da opinião publica, que tanto pretendeu captar, antes de subir ao poder? Faz mal, porque ha-de chegar e oxalá que chegue a tempo o momento em que El-Rei se recorde das suas palavras de ha um anno:
A responsabilidade do decreto, ainda que aparentemente só acto do poder executivo, recahe mais uma vez sobre o Rei, a quem todos hão de pedir a responsabilidade da sua assignatura». (Correio da Noite, 15 de Maio de 1907).
E a 24 de Maio vociferava: «A monarchia precisa dos monarchicos… a monarchia precisa dos monarchicos, mais do que estes precisam da monarchia». Todos os dias novos boatos, todos os dias nova causa de excitação. Barafunda, prisões, protestos. N'uma reunião celebre, por um triz que os regeneradores não passam em massa para o campo republicano. E o Correio da Noite, no acesso do delirio, apelava já para a linguagem biblica: «O que tem ouvidos para ouvir ouça; o que tem olhos para ver veja…»
«Do alto deve descer o exemplo, e quando as acções dos que governam são de preversão e de crime, de corrupção e de suborno, de desbarato dos dinheiros publicos e de abuso do poder, os actos dos governados não podem ser de veneração e de paz, de obediencia e de acatamento.
Com torrentes de sangue se conquistou a alforria do povo, com oceanos de lagrimas se lavou a mancha do absolutismo». (Correio da Noite, 1 de Junho de 1907).
Que faziam os dissidentes, o mais avançado dos partidos monarchicos? Os dissidentes conspiravam. As dissidencias anteriores, a do Mariano, a do Navarro, tinham fracassado: a do Alpoim ia dar como resultado a revolução. – Foi o senhor que fez a republica. – E elle dizia, com o olho esperto a luzir: – Levei-os pela mão. – Julgando conquistar o poder, perdeu-o para sempre. «Baralhou para dar», como aconselhava o Marçal Pacheco – mas enganou-se no trunfo. Depois que se separou do José Luciano nunca mais acertou, na phrase do Moreira d'Almeida… Era um grupo tremendo: o João Pinto dos Santos, tenaz e resoluto como as armas; o pratico Centeno, mola distendida sabe Deus até onde; o Queiroz Ribeiro, o Pedro Martins; o sagacissimo Egas Moniz, a quem ninguem consegue ouvir os passos – mas que toda a noite, todo o dia, roda nos meandros da politica, conspirador e politico até á medula; o Moreira d'Almeida, capaz de falar e de escrever um dia inteiro, sem um desfalecimento, enfiando todas as formas e todos os estilos, de tal maneira que, muitas vezes o Antonio Ennes ou o Alpoim duvidavam se os artigos, que elle escrevia, lhes pertenciam, apanhando no ar as questões, e com um grupo de amigos a latere, que conheciam a fundo as colonias e as finanças; mais este e aquelle, e outras raizes lançadas ao acaso, e ligações no Porto com um «mercante espertissimo», como nas discussões ouvi chamar a Lima Junior. O chefe d'este grupo unido e compacto era extraordinario… Agitação perpetua. Orador admiravel, sobretudo na réplica, em que perdia a retorica e ficava incisivo e nu como uma espada. Um passo a mais e seria um escriptor ilustre: não teve um momento de seu para rever as provas. Com a paixão, a colera, o arrebatamento, um grande coração. Nunca lhe conheci odios, e muitas vezes lhe ouvi defender até o seu maior inimigo, o José Luciano. Ao proprio D. Manuel elle diz: «…O José Luciano vale mais do que todos os progressistas e regeneradores juntos, contando com elle proprio Alpoim ». (Documentos politicos). E quem conheceu o Alpoim sabe que as notas que o rei escreveu são mais que exactas, são phonographadas. É elle a falar d'este e d'aquelle, dos amigos, dos inimigos – de Deus e do Diabo. Uma ambição do poder que o leva arrastado, mais pela lucta em si, necessaria a um temperamento excessivo, do que por vaidade ou vangloria. Principios poucos – meios aquelles que os adversarios, a tenacidade e o rancor de José Luciano, lhe deixavam. Acusaram-no de tudo – acusaram-no da morte de D. Carlos… «Até disseram, Senhor, que fui eu que matei El-Rei D. Carlos!!!» (Documentos politicos). Resistiu sempre; morreu a conspirar. Nos seus ultimos annos não sei que tristeza o envolve… A figura parece maior, as palavras simplificam-se-lhe, os sentimentos tambem. Engrandece. Raros teriam, como elle teve, a sinceridade de escrever: «Na minha defeza, que teve de ser espectaculosamente rude por vezes e d'uma acção subterranea por outras, excessos cometi de que me penitenceio – mais do que se imagina»… E repete e insiste: «Em muitos actos da minha vida de lucta, por vezes injustamente combatido, tenho sido exagerado – e errei. De muitas coisas estou repezo, e d'ellas hoje se admira a minha inteligencia e peço perdão á minha propria consciencia e até aos homens!» Quantos ha ahi capazes d'esta grandeza? Quantos – tendo todos juntos concorrido para a morte de D. Carlos – o acusaram a elle só, com a tinta do Correio da Noite ainda fresca?
«Aqui d'El-Rei – se nos pode ouvir El-Rei – contra quem mandou assassinar o povo de Lisboa.» (Correio da Noite, tarjado de luto). «Aparecem hoje, segundo ameaças do governo e segundo as suas notas oficiosas sempre irritantes á imprensa, decretos esmagadores. Tanto peor para o Rei e para as Instituições. As responsabilidades d'esses decretos, ainda que aparentemente só do poder executivo recairão mais uma vez sobre o Rei, a quem todos hão-de pedir a responsabilidade da sua assignatura. (Correio da Noite, 20 de Junho de 1907).
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Quem reina agora em Portugal não é o senhor D. Manuel, é sua Magestade o Mêdo. Que quadro para um Saint-Simon, que descrevesse os politicos e a côrte, o que se diz e o que se adivinha, o que resalta dos Documentos politicos, e o que se conserva na sombra como um baixo relevo de odios e de interesses! Enredam, intrigam-se, perdem-se todos juntos. A politica portugueza gira sobre este fulchro: «O José Luciano, não podendo governar por se achar impossibilitado… e não querendo substituir-se para não perder o comando de que é muito cioso»18 emprega até ao fim todos os esforços para inutilisar o Julio de Vilhena. Só pela vã ambição de mandar? O velho é perspicaz e teimoso, o velho conhece, como poucos, os homens e entende que só elle pode e sabe governar. É teimosia e grandeza. Não abdica, não pode. Toda a vida foi obedecido. Aferra-se. O que elle quer é ser o «Deus ex-machina da nossa politica sem se mexer da sua chaise-longue». Que tipo! Governou sempre, mandou sempre, conservou-se sempre lucido. E tanta serenidade, que até no dia em que lhe assaltaram a casa dos Navegantes, é o unico que não perde o sangue-frio, e, quando o querem esconder n'uma banheira, teima em ficar na cadeira de rodas! Tem a logica do diabo e uma manha, um conhecimento dos homens, a que os outros não chegam. Desde o principio que todos se congregam para enfraquecer o partido regenerador. «Isto – diz a velha rapoza – é uma lucta de politicos que se querem inutilisar e desacreditar uns aos outros». É assim – e nenhum d'elles se lembrou que só os republicanos lucravam. Até os franquistas. «Os franquistas, por intermedio do Martins de Carvalho, forneceram aos republicanos todos os elementos que poderam colligir para descredito dos rotativos» (T. do Amaral ao rei). Até os nacionalistas. Entretanto o rei ouve-os e toma notas… A sua vontade é acertar. Passa a vida a acertar, o que não é bem a missão d'um chefe, mas a d'um relojoeiro. Não creio que os homens se governem só pelo interesse ou pelo terror, como queria Napoleão, mas creio que se não governam com pannos quentes, e que mais vale tomar uma decisão má do que não tomar nenhuma. O povo, como o soldado, precisa de sentir um chefe, e adivinha-o logo. Tudo no rei são boas intenções. Mal ousa dar um passo, não se resolve nunca – e atraz d'elle está a mãe, que quer educal-o para rei, mas que tem diante dos olhos o quadro horroroso… Apezar d'isso é ella propria que o incita a passear á luz do dia, como uma vez quando o trouxeram a galope, entre uma escolta de cavalaria, do Rocio ao Paço… Arrisca-o. Procura congraçar toda a gente. E odiada. A D. Maria Pia, histerica e perdularia, agradou sempre: até os seus ditos se repetiam: – O senhor é um merda! – ao D. Luiz, quando elle aceitou as imposições do Saldanha; até os seus vestidos, a sua ostentação, a atmosphera de rainha extravagante, que só sabia que existiam contos e patacos, os chapeus que mandava vir de Paris, aos trinta e quarenta, em cada estação; até a sua desordem elegante de histerica. Nem os jornaes republicanos a atacavam. E quando foi para o exilio, já doida, com um pão debaixo do braço e uma manta pela cabeça, só ella deixou saudades. Era a Rainha. A D. Amelia não. Essa senhora, de quem alguem disse: – É um grande homem de bem! – subiu todo o calvario da vida. Era religiosa – o que só a honra – chamaram-lhe beata. Andou nos folhetins e nos pamphletos. Os seus criados detestavam-na19. Ao passo que a rainha D. Maria Pia, falso anjo de caridade, pouco fez com o seu espalhafato e foi adorada, a D. Amelia, que combateu metodicamente a tuberculose, espalhando o bem a mãos cheias, fundando a Assistencia Nacional, com os seus sanatorios e dispensarios, as cozinhas economicas, o hospital do Rego, o Instituto de Socorros a Naufragos, e contribuindo para a fundação do Instituto Bacteriologico, etc., foi sempre odiada, calumniada, insultada. Nem dentro de sua casa lhe era possivel conversar. Um dia, para falar em segredo com um ministro, chamou-o para o meio da sala: – Aqui, porque senão vem tudo amanhã no Mundo. – E vinha. Até o homem dos telephones era carbonario… Estou em dizer que é o acaso que governa a vida: a razão não é, com certeza.
O sr. Hintze Ribeiro é d'uma grande generosidade para com a sua familia.
Demonstra-o a seguinte lista, cuidadosamente confeiçoada sob informes do Diario do Governo:
Para o elevado logar de inspector dos impostos no Porto foi transferido o sr. dr. José Paulo Menano, de 24 annos de edade, casado com uma cunhada do sr. Hintze.
Ha tempos, foi colocado no logar de director do hospital das Caldas da Rainha o sr. dr. Augusto Cymbron Borges de Sousa, cunhado do sr. Hintze.
O sr. Manuel Hintze Ribeiro, irmão do sr. Hintze, foi graduado em inspector superior da alfandega de Ponta Delgada, passando de 1.170$000 a 1.700$000, mais do que ganha um director geral.
O sr. Antonio Moreira da Camara Coutinho, sobrinho do sr. Hintze, foi nomeado director da alfandega do Porto, com quatro contos de reis anuaes, o ordenado d'um ministro, quasi.
O sr. Manuel Rebello Borges, 2.º oficial da alfandega de S. Miguel, foi nomeado director da mesma casa fiscal, com um conto seiscentos e vinte mil reis.
É uma fortuna para o paiz que a familia do sr. Hintze não seja mais numerosa.
Aliaz, não haveria contribuintes cuja pelle chegasse para pagar tantos encargos…
«Havia familias das proximidades do Paço que se alumiavam só com as vellas do palacio real, compradas por vil preço. As contrabandistas andavam pelas casas dos seus freguezes oferecendo roupas, desde os vestidos da rainha e dos fatos do rei até ás roupas brancas, meias de seda e sapatos de setim com a corôa real, para não oferecer duvidas acerca da procedencia. D'estes factos tivemos conhecimento de sciencia certa, por vivermos n'esse tempo perto do Paço e nos terem vindo oferecer por mais de uma vez os espojos do saque, que não aceitamos por varias razões, sendo uma d'ellas a falta de vocação para receptadores de roubos. A vocação nasce com a pessoa. Da ucharia do Paço banqueteavam-se os parentes dos empregados e cremos que até os amigos.
A audacia do latrocinio chegou ao extremo. Indo um dia o rei D. Luiz caçar á Tapada e tendo morto tres coelhos, ao chegar ao Paço lembrou-se de os mostrar á rainha.
Mandou-os buscar, mas apenas lhe apresentaram um, porque os dois restantes tinham desaparecido durante o breve precurso da Tapada até á Ajuda.
Nos proprios charutos do rei todos os dias dava um ataque epileptico que os obrigava a saltar das caixas sem que se soubesse para onde tinham desertado. Chegou o descaramento a ponto de não deixarem um charuto para o rei fumar».