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XII
NA ABYSSINIA
Ao cabo de tres annos de trabalhosas e arrojadas viagens, entrava finalmente Pero da Covilhan nos encantados dominios do legendario Préste João. Parece, que Deus lhe inspirára acinte aquella digressão, pelas regiões desertas da Arabia, para retemperar-lhe o animo, e tornar-lhe mais attrahente a paizagem deslumbrante do novo paiz que demandava. Ao passo, que foi o primeiro a mostrar, em uma carta maritima, a derrota, que as nossas caravelas deviam seguir para a India, ia agora tambem levantar o véo, que trazia occulta aos olhos da Europa a historia da Abyssinia.
Em mil narrativas exaggeradas e phantasticas, acolhidas pela curiosidade credula, havia sómente um fundo de verdade: a existencia de um povo christão no seio da Africa, defendendo gloriosamente a sua independencia contra o islamismo.
Mas onde e quem se esforçava com tanto denodo? – Ninguem sabia responder; pois até mesmo no Oriente o reino do Préste João era quasi desconhecido, talvez por estar tão remontado ao trato e commercio das gentes.
Póde considerar-se essa vasta região ethiopica um immenso planalto, elevado entre a bacia do Mediterraneo e o Oceano Indico, e limitado ao Norte pela Nubia, a Oeste pelo Sennaar, ao Sul por paizes do sertão africano oriental, a Léste pelo mar Vermelho. E abrange tres zonas distinctas: a inferior, ou o Kolla, em que a temperatura varia de 20 a 40° centigrados, encontrando-se, n'esta região verdadeiramente tropical, a fauna e a flora especiaes da Africa, e produzindo abundantemente o solo sem cultura; a media, ou o Onaïna Déga, com a temperatura de 15 a 30°, sendo a parte mais fertil e mais propria para o amanho da terra; a superior, ou o Déga, cuja temperatura varia de 5 a 15°, e cáe abaixo de zero nas mais altas montanhas.
As serranias, que em differentes direcções córtam este massiço, parece formarem um systema á parte na orographia geral do continente negro. O numero d'ellas, a sua fragura, e o effeito permanente das nuvens condensadas em volta dos lanceolados pincaros de algumas, causam temor a quem as vê, quanto mais a quem as passa. E raramente se faz jornada, em que não haja necessidade impreterivel de as collear e transpôr; por isso talvez alguns exploradores, antes de Pero da Covilhan, se houvessem abeirado d'ellas, e, sem animo de se expôrem a tão invios caminhos, voltassem para traz.
Pero da Covilhan não desfalleceu; admirou taes montanhas, que se lhe afiguravam degraus, ou escadas gigantes, amontoadas por Titans, para escalar o Céo. Maravilharam-n'o esses alcantis de granito e quartzo, com agudas arestas a desafiar as tempestades, e em cujas quebradas os diluvios do tropico tinham cavado corregos profundos. Lá do cume as torrentes, no periodo annual das chuvas, despenham-se com violencia nos valles estreitos, indo engrossar os numerosos cursos de agua, que serpeiam nas campinas, caudalosas e arrogantes.
Então o Tacazé ou Nilo negro, que na bacia hydrographica septentrional recebe grande numero de tributarios, saindo do Tigré, a quem banha, vae, sob o nome de Albára, ao occidente lançar-se no Nilo com dobrado impeto. E na bacia do Sul, em Amhara, que contém na sua parte central o grande lago Tana, onde desaguam muitissimas correntes, o Abaï ou Nilo azul, atravessando uma parte d'esse lago e recebendo depois o Djamma, cujo extenso e tortuoso valle sulca o reino de Chôa, adquire um tal volume, que aos proprios indigenas enche de pavor. Ao norte encontram-se igualmente alguns lagos sobre o vertice das montanhas.
Com os aspectos severos alternam, porém, as perspectivas risonhas.
Nas veigas açoitadas pelo vento, as corôas-de-rei douradas, os trevos purpurinos e as verdes grammineas, formam ondulações matizadas, como se fôra em mar brandamente agitado de flores e verdura. Ao mesmo tempo o sussurro das florestas proximas é um fundo de concerto, que faz sobresair o canto alegre das aves, como a doce verdura é o fundo da côr, sobre que se destaca o brilho das flores e dos fructos.
Como deve ser opulenta a flora d'este paiz tão accidentado e humido, aquecido pelos raios verticaes do sol, e em que a temperatura tanto varía, determinada pelas grandes differenças de nivel!
A propria natureza parece gostar de se oppôr a si propria, pois reune todas as estações no mesmo tempo, todos os climas no mesmo lugar, terrenos contrarios no mesmo solo.
O botanico encontra ahi as plantas mais raras; ao zoologo é facil apanhar insectos tão variados, como a vegetação que os nutre; o geologo vê massas centraes do globo desentranharem-se, e furarem a superficie, para se lhe mostrarem; o meteorologista emfim póde a cada instante observar a formação das nuvens, penetrar no seu interior, ou elevar-se acima d'ellas.
Como em todos os paizes situados na zona torrida, a presença da agua accusa as riquezas de uma vegetação luxuriante e vigorosa.
Ao saír-se da garganta de uma montanha, alegra de repente a vista uma extensa planicie, em que o trigo, o milho e a cevada attingem proporções extraordinarias, bem como o teff, coberto de flôres purpurinas, e cujo grão oblongo dá uma farinha saborosa.
O pão abunda por toda a parte. E, quando nuvens de gafanhotos, vindos do Sudão, devastam as ceáras, o enséte, que é uma especie de bananeira, cujo fructo se não aproveita, offerece no seu caule, uma vez que não esteja completamente desenvolvido, farto e delicado alimento.
Outros flagellos dos campos são as manadas de vaccas bravas, e o numero infinito de bugios ou cynocéphalos. Estes, por serem tão damninhos, obrigam a vigiar as ceáras, para que não as destruam, temendo-se a sua invasão unicamente de sol a sol, pois de noite não sáem a comer.
O agigantado baobah, o sycomoro sempre verde, o tamarindo, a palmeira excelsa, o kuara com as suas bellas flôres coralinas, a mimosa, o cusco, o wansey, cujas flôres alvissimas abrem todas a um tempo, o daro, que escolhe, para os abrigar com a sua sombra benefica, os sitios mais pittorescos, emfim todas estas e outras arvores egualmente frondosas, formam immensas florestas, ou, antes, verdadeiros massiços de folhagem, que, sendo arregaçada pelo vento, apresenta os mais singulares e formosos cambiantes.
No mesmo solo humedecido, e alcatifado de flôres odoriferas, crescem elegantes arbustos, emquanto que as trepadeiras, o cipó flexivel, os pampanos carregados de uvas pretas, se abraçam ao tronco das arvores protectoras, revestindo-os de gala, subindo até se suspenderem de seus ramos, e formarem grinaldas graciosas.
E em todas essas florestas e campinas, innumeros animaes, que teem o seu retiro á sombra dos pavilhões de verdura, e raro são perturbados pelos passos do homem. Fazem d'estas vastas solidões um grande e magnifico quadro, uma scena animada e grandiosa, uns pela belleza da sua pélle, vivacidade de seus movimentos, agilidade de seu andar; outros pela frescura de suas pennas, graça de seu todo, rapidez de seu vôo, melodia de seus trinados; todos emfim pela immensa variedade de suas fórmas. O esmalte das flôres mistura-se com o brilho das folhas, e são apagados ambos pelas côres mais brilhantes ainda da plumagem das aves, mórmente da do sonis-manga, ou cynnirus splendidus, conforme a denominação scientifica moderna.
Nas regiões mais aridas, o cactus, a especie de euphorbio, denominada kolquall, a palmeira anã, o kautuffa coberto de espinhos, dão signal de vida vegetativa em terreno ingratissimo, e são testemunhas das perseguições dos chacaes e das hyenas aos bandos de gazellas, corças, e outros antilopes, como o beni-israil, igualmente elegantes, que logram escapar, por causa da ligeireza dos movimentos e rapidez da carreira, a esses crueis inimigos.
Em algumas das montanhas, os zambujeiros e os cedros altissimos servem de asylo aos leões, aos lynces, ás pantheras, aos leopardos, aos girátacácheus, a todos esses monstros ferozes, de que é como que patria o continente negro.
Á beira das lagoas e das ribeiras, a canna, o bambú, e o papyro alto, garridamente empennachado, banham seu pé nas aguas limpidas, mas suas hastes elegantes e frageis são muitas vezes partidas á passagem do rhinoceronte bicorneo, ou do pesado hippopotamo. Além d'isso os crocodilos infestam os rios, em cujas margens vôam innumeras aves aquaticas.
No meio d'essa exhuberancia de vegetação emfim, até os mais humildes musgos se encontram occultos debaixo das neves eternas. O mangericão, e muitas outras plantas da familia das labiadas, alcatifam e aromatizam deliciosamente os montes. E para corôa d'esta prodigiosa flóra, nas maiores altitudes sobresáem o Kousso-Brayera anthelmintica, e o Gibarra– Rhynchopetalum, que se elevam descommunalmente.
Pero da Covilhan, depois de ter caminhado por estreitos passos e á beira de medonhos precipicios, sobre o dorso de montanhas cortadas a pique entre valles tão profundos, que não chegam os olhos a vêr-lhes o fim, apartou-se da caravana, em que vinha, e dirigiu-se á côrte do Préste João.
Reinava o imperador Escander ou Alexandre. A sua residencia era amovivel, por isso Pero da Covilhan em vez de avistar ao longe edificios, que lhe dessem a idéa de uma povoação, viu numerosas tendas armadas em um grande campo, as quaes constituiam a capital do imperio. E convinha-lhes o nome de cidade, não só pela multidão de gente n'ellas abrigada, senão pela boa ordem, como as tinham dispostas.
Ao approximar-se do arraial, deparou Pero da Covilhan, ainda a certa distancia, com quatro leões amarrados por grossas cadeias de ferro, e separados uns dos outros. Logo atraz d'elles prolongava-se uma larga rua, orlada com symetria por vinte arcos de madeira de cada lado, nos quaes estavam enrolados alternadamente pannos de algodão brancos e rôxos. Grande numero de cavallos á mão, morzellos, pombos, castanhos, russos, russo-rodados, meládos, fouveiros e outros, todos de boa raça, com as garupas contra os arcos, e bem arreados, tendo cellas muito leves, estribos á bastarda e lóros muito compridos, formavam duas fileiras uma em frente da outra, voltadas para o centro da rua. Quatro d'esses cavallos, com arreios riquissimos, eram cobertos com excellentes colchas de brocado. Na rectaguarda de todos viam-se postados cem homens com azorragues. Mais de vinte mil pessoas de differentes classes se agglomeravam de um e outro lado da rua, ao cabo da qual se destacava uma grande tenda rôxa, seguindo-se após ella, em diversos arruamentos milhares de outras, todas brancas.
Este apparato era proprio do dia festivo, em que Pero da Covilhan, surgiu, por mero acaso, na côrte abyssinia. A sua presença produziu a mais desusada sensação no ajuntamento.
Saiu-lhe ao encontro um homem ricamente vestido, e perguntou-lhe ao que vinha. Pero da Covilhan, mostrando-lhe as cartas, que levava de D. João II para o soberano da Abyssinia, respondeu-lhe em puro amharico – já n'esse tempo a lingua da côrte – que fôra encarregado pelo rei de Portugal, seu senhor, de entregar pessoalmente aquellas cartas a sua alteza, o mui alto e poderoso imperador da Ethiopia, e desejava por isso ter a honra de lhe ser apresentado. O seu interlocutor levou esta mensagem ao soberano, e pouco depois conduziu á presença d'elle Pero da Covilhan.
Logo na primeira sala da grande tenda roxa, forrada de finas sedas, sobre um catre coberto com tres colchas da China, de modo a conhecer-se pelas suas barras de cotonia de seda o numero d'ellas, estava sentado o imperador, rodeado da sua côrte.
Á entrada Pero da Covilhan, ao vêr o Préste, abaixou a mão direita até ao chão, e com ella tocou em seguida o alto da cabeça, consoante lhe fôra, a seu pedido, ensinado pelo introductor. Adeantando-se depois, ajoelhou em frente do soberano, a quem deu as cartas de D. João II, as quaes eram escriptas em arabe. O Préste mandou-o levantar, fez-lhe algumas perguntas ácerca da sua viagem, e principalmente a respeito de D. João II; despedindo-o depois com muito agrado, disse-lhe, que fosse descançar, para mais tarde conversarem largamente, como desejava.
Esta recepção amavel poz logo em boas relações Pero da Covilhan com os grandes da côrte, e muito mais depois de constar, qual foi o assumpto das cartas, que trouxera. Egualmente contribuiu, para elle lograr a sympathia publica, o preconisar, desde logo, com enthusiasmo a magnificencia da côrte, e a riqueza do vasto imperio, que teve a fortuna de visitar.
A côrte compunha-se do Bellátimoche goytá, mordomo-mór; do Tecácase Bellátimoche-goytá, pequeno mordomo-mór; dos dois Betendet, os validos do imperador; do Titaurári, que fazia o officio de marechal; e outros dignitarios de menor categoria. Além d'isso frequentava diariamente a tenda imperial o Abima, que quer dizer páe, e era o metropolitano da egreja ethiopica, enviado pelo patriarcha Kopta da Alexandria. A esse bispo, unico da Abyssinia, devia obediencia, mas tinha grande auctoridade, o étch'égé, prelado do numeroso clero regular, e officialmente prior do convento de Debra-Libanos, em Chôa, fundado pelo abima Tekla Haimanot. Logo abaixo, senão quasi a par do abima, havia o Labeata, padre de nomeação imperial. Junto do soberano funccionavam os Azages e Umbares, dezembargadores e ouvidores do imperio, sem escrivães, nem tabelliães, por serem verbalmente averiguadas e julgadas na presença das partes todas as suas demandas, e do mesmo modo proferidas as sentenças. Não havia as papelladas de nossos autos, a que B. Telles chama pégo immenso de trapaças.
O livro da lei, Fitha Negoust, compunha-se de textos mal traduzidos do codigo Justiniano, amalgamados com prescripções religiosas. Antes de serem ouvidas as testemunhas, iam á porta principal da egreja, prestar juramento na presença de dois clerigos, que tinham ahi incenso e brazas. A pessoa que jurava, punha as mãos na porta, e um dos clerigos dizia-lhe: «falla verdade, e se jurares falso, assim como o leão traga a presa no bosque, assim seja tua alma tragada do diabo; e assim como o trigo é quebrado entre as pedras, assim os teus olhos sejam moidos dos diabos; e assim como o fôgo queima a lenha, assim a tua alma seja queimada no fogo do inferno e feita pó; e se verdade disseres, a tua vida seja alongada com honra, e a tua alma góze do paraizo com os bemaventurados». A cada uma d'estas maldições e bençãos respondia o que jurava: amen.
O povo era de pouca verdade, ainda que jurasse, a não ser, que fizesse o juramento pela cabeça do imperador, ou que fosse ameaçado da excommunhão, que sobre tudo temia.
As tendas do imperador, á excepção da rôxa, que sómente armavam nos dias festivos e para as grandes recepções, eram brancas e cercadas por umas cortinas de algodão preto e branco em xadrez, as quaes formavam como que um muro, e em volta giravam muitas sentinellas.
Quando o acampamento mudava de local, iam á distancia de um tiro de bésta, na frente da comitiva imperial, os quatro leões, dois a dois, com gargalheiras de ferro, a cada uma das quaes prendiam symetricamente quatro cadeias do mesmo metal, um pouco compridas. Tiravam-n'as dezeseis homens, quatro por cadeia; sendo oito adeante e oito atraz do leão, de modo que este podia andar unicamente na direcção dos homens que o antecediam.
Em seguida caminhavam os cem homens com azorragues, e, dando em vão com a comprida correia presa ao pequeno cabo do açoite, ouvia-se um forte estalido, que fazia afastar a gente.
Após estes marchavam na cadencia de passo accelerado, setenta porteiros de maça, vestidos uniformemente, com camisa e calção de seda, apertado por um cinto do mesmo tecido, cujas pontas chegavam ao chão; aos hombros uma pelle de leão, e sobre esta um collar de ouro mal lavrado, tendo engastada muita pedraria falsa.
O altar, em que diziam missa ao Préste, e a pedra de ara, eram levados por clerigos nos braços, indo adeante um diacono, tangendo uma campainha.
O Titaurári escolhia o lugar do arraial, assignalando com uma lança cravada no terreno o centro da área, que deviam occupar as tendas imperiaes. Detraz d'aquella, em que dormia o soberano, á distancia de um tiro de bésta, ficava a da cozinha, da qual levavam a comida em tijellas e panellas de barro preto mui fino, postas em bandejas conduzidas por pagens, e tudo debaixo de um pallio.
Pouco afastada das tendas do imperador era a da egreja, e na frente d'aquellas as dos tribunaes, seguindo-se em circuito as do pessoal da côrte. Nas restantes, assentadas e arruadas por sua ordem, alojavam-se mais de duzentas mil pessoas, bem como cavallos e mulas, em numero superior a cem mil; tudo como se fôra uma cidade populosa, onde não faltava, o que para uma povoação em taes condições se tornava mister.
As costas de todas as tendas eram para o oriente, e as portas para o poente.
As pessoas pobres dormiam sobre o seu Neté, que era um coiro de boi, extendido no chão, e que lhes servia tanto de cama como de lençol. Como cobertor empregavam a sua capa, que podia ser de panno branco, ou simplesmente uma pelle de carneiro, leão ou tigre.
Assim como o arabe não larga o turbante, o abexim nunca se separava voluntariamente da capa. Quando se dava até o caso de ser preso por haver commettido algum delicto, o encarregado de o levar á presença do juiz, para evitar que se evadisse, apenas tomava a precaução de atar á sua a capa do captivo; se este fugisse, abandonando a capa, reconhecia-se implicitamente culpado, e, logo que tornasse a ser preso, puniam-n'o sem julgamento prévio.
Muitos dos mais abastados possuiam catres precintados de correias, sobre as quaes extendiam o coiro de boi, e os cobertores eram duas colchas de seda. O travesseiro consistia em uma forquilha de páu, chamada bercutá, onde não recostavam a cabeça, porque esta ficava em vão, mas o pescôço, para não amachucarem os cabellos, que traziam sempre muito enfeitados.
Como os senhores se assentavam ordinariamente sobre alcatifas, e os mais sobre esteiras, as mezas, onde comiam, eram muito baixas, de fórma redonda, e não havia toalhas nem guardanapos. Limpavam-se ás ápas, espécie de pão de varias farinhas, em que entravam a do teraux e a do cousio, e que tambem lhes servia de alimento.
Sobre as ápas collocavam as iguarias, sem outros pratos; mas, vindo estas com môlho, eram servidas, com as indispensaveis papas, em tigellas de barro preto, as quaes cobriam com umas tampas conicas de palha fina, chamadas escambiás.
Assavam a carne sobre as brazas, e, quando comiam crua a de vacca, embebiam-n'a com fel da mesma rez. Chamavam berindó a este amargo manjar, um dos mais delicados da sua mesa.
Tinham para bebida nacional, de que sómente usavam depois das refeições, o hydromel; que constava de cinco ou seis partes de agua, uma de mel, e uma porção de cevada torrada, que fazia ferver a mistura, lançando-se depois n'esta uns pedaços de páu, denominado sardó, que em cinco ou seis dias de infusão modificava a doçura do mel.
Para a meza do imperador, transportava-se o hydromel, por occasião das mudanças de arraial, em cem jarras pretas de seis canadas cada uma, tapadas com barro e selladas, e denominavam-se gombos. Os portadores d'ellas iam escoltados por muitos homens d'armas.
Como abundava por toda a parte o mel e a cêra, d'esta faziam vellas, com que se allumiavam, e preferiam aquelle ao assucar, por isso unicamente se serviam da canna para alimento.
Á excepção de pepinos, melões e rabanos, que se não davam em parte alguma do territorio abyssinio, havia todas as fructas e legumes conhecidos, sendo escassa a producção de hortaliças.
Além de grandes creações de vaccas, ovelhas e cabras, era extraordinaria a quantidade e variedade das aves, sem faltarem as codornizes, as rôlas, os patos bravos, os tordos, as andorinhas, os rouxinóes e as gallinhas do mato. As perdizes, de tres castas: umas, como grandes capões, da mesma côr e feição das nossas, salvo terem os pés e bicos amarellos; outras, corpulentas como gallinhas, com os pés e bicos vermelhos; e as restantes, do tamanho das nossas, differindo d'ellas sómente na côr pardacenta dos bicos e pés.
Appareciam tambem coelhos e lebres.
Tirante o arraial do imperador, nenhuma povoação merecia o nome de cidade, nem de villa. Tudo eram aldeias maiores ou menores, em geral abertas; e unicamente cercadas de uma parede ensôssa, as que ficavam fronteiras dos gallas, os mais temiveis inimigos dos abexins, pois com perpetuas correrias lhes assolavam os campos, e nem semeal-os deixavam.
Algumas das maiores povoações, declaradas inviolaveis, serviam de refugio. Respeitadas por todos os partidos nas guerras civis, tinham o nome de gueddam e seus governadores o de alikas.
A situação das aldeias era, ou nos extremos das planicies, ou nos cumes de algumas montanhas. As casas, commummente redondas e terreas, com as paredes formadas de estacas muito juntas, e cobertas de palha, ou com açoteas em vez de telhado. As dos mais ricos differiam um pouco, por terem as paredes de pedra ligada com argamassa, e o vigamento do tecto ser de aguieiros de cedro tão unidos, que serviam de forro, effectuando-se essa união por meio de cordões de varias côres, que produziam bello effeito. Em terreno fechado com cêrca de pedra ensôssa até á altura de seis ou sete palmos, e d'ahi para cima com sébe muito bem tapada, feita de ramos de arbustos espinhosos, que davam flôres muito delicadas, oito ou mais d'aquellas casas constituiam a vivenda muito aprazivel dos senhores.
Os abyssinios provêem de uma mistura de povos diversos, por isso os orientaes lhes chamam hobesch. Raça esbelta, elegante e vigorosa, de rosto oval, nariz adunco, muitas vezes bem talhado, bôca rarissimamente guarnecida de labios grossos, cabello mal encrespado, a pelle mais ou menos aspera, não molle e assetinada, como a da raça negra; corre-lhes nas veias sangue do egypcio antigo, do bérbere, no sentido mais lato d'esta palavra, do foulah ou peulh– raça vermelha, do arabe e do africano puro. N'esta mistura dominam successivamente, segundo as regiões, os typos secundarios mais proximos, bedjas, somali, galla e o syro-arabe, por isso, além do preto, a côr da pelle varia muito, encontrando-se o moreno em todos os tons, e até o branco; este, porém, exangue e sem graça.
Eram os abexins boa gente de guerra, excellentes cavalleiros, creados e curtidos nos trabalhos, soffredores da fome e da sêde. A vida, dos que se não occupavam nos labores agricolas, era a guerra. N'esta se creavam de pequenos, e n'esta envelheciam. Mui simples o seu uniforme. Um calção leve, e pouco largo, de algodão, seguro por uma faxa do mesmo panno enrolada á cintura. Uma capa de egual tecido mais encorpado, e sobre ella uma pelle de panthéra negra ou de leão. Calçavam alparcatas, e andavam nús de braços e pernas, pois o calção mal cobria estas até ao joelho.
Em geral a plebe não usava calçado, e o seu vestuario reduzia-se a umas bragas de algodão e uma capa, que podia ser uma pelle ou um largo panno tambem de algodão.
Muitos abexins vestiam calções mouriscos, que desciam recramados até ao artelho, onde os apertavam, sendo de damasco ou velludo do joelho para baixo, e d'alli para cima, como ficavam cobertos pela cabaya, faziam-n'os de teada. Os calções dos grandes da côrte ajustavam-se ás pernas, e as cabayas, como as dos baneanes, abertas até á cinta, eram abotoadas com botões miudos. Em um collarinho cozido a umas mangas estreitas e compridas, a ponto de recramarem, tudo feito de bofetás de Cambaya ou de um fustão azulado da mesma proveniencia, consistia a camisa, ou antes o simulacro d'ella. Alguns substituiam aquelles tecidos por tafetá ou setim, e, quando vestiam cabayas turquescas de velludo, ou de brocadilho de Mecca, não se cobriam com capa, que era de panno fino da terra ou de bofetá.
Quando vinha de suas terras um nobre, chamado á côrte pelo Préste, emquanto andava nú da cinta para cima, e sómente com uma pelle sobre os hombros, ainda não estava na graça do Senhor; mas logo que fallasse com o Préste, e saisse da sua tenda vestido, já estava na graça do Senhor.
Todos andavam em cabello, que deixavam crescer, para fazerem penteados caprichosos. As mulheres encaracolavam algum, com o qual emmoldoravam graciosamente o rosto, e usavam solto o restante, que lhe cahia fartamente sobre os hombros.
O armamento da milicia compunha-se de uma rodella de pélle de bufalo; dois zargunchos: um estreito para o arremesso nos primeiros encontros, outro largo, com que esgrimiam na lucta; maças de páu duro e pesado, denominadas bolotás; punhaes, que tambem serviam de arma de arremesso; e lanças curtas para os cavalleiros, os quaes igualmente faziam tiros com zargunchos estreitos, como se foram dardos.
Os mais nobres cingiam espada – de que raras vezes se serviam – com empunhadura dourada ou de prata, e bainha de velludo ou de outra sêda. Alguns traziam tambem adaga.
Os cavalleiros com sáia de malha – que poucos eram – não se curavam de rodella, porque os embaraçava, e usavam de capacete.
Sem ordem alguma de formatura, as batalhas começavam e acabavam no primeiro choque, fugindo uns, e seguindo os outros a victoria.
Para a guerra iam os cavalleiros montados em mulas, muito mansas, grandes e bem feitas, e levavam os cavallos á dextra, porque estes, como não tinham ferraduras, depréssa ficavam despeados. Os homens, descalços mettiam nos estribos sómente o dedo pollegar de cada pé.
Além da gente de armas, era muita mais a que seguia o arraial e a bagagem d'elle. Iam familias inteiras, e eram necessarias muitas mulheres, para fazerem as ápas e o hydromel. Muitos não levavam matalotagem, e, quando se acabava a dos outros, não pediam todos elles mantimentos aos camponezes, por cujas habitações passavam, mas invadiam estas e roubavam-n'as com uma furia verdadeiramente selvagem.
Como não corria moeda no paiz, nem o Préste a mandava cunhar, as compras effectuavam-se por troca de ladrilhos de sal gemma, chamados amalé, cortados a machado em perpetuos e inexhaustos jazigos.
Sem embargo de haver no paiz abundante minerio de ouro, prata, cobre e estanho, os habitantes não sabiam proceder á extracção d'esses metaes, e aproveitavam-se unicamente d'aquelles, que as chuvas descobriam nas regueiras com a corrente das aguas.
A carencia absoluta de salinas, e o desconhecimento completo da metallurgia, explicam talvez, por que aos abexins servia de moeda o sal gemma; e, como a natureza lhes prodigalizava quanto precisavam para trocar pelos productos importados de outros paizes, prescindiam ou não sentiam falta da moeda.
A egreja, outros edificios, e o grande numero de altos obeliscos, em Aquaxumo, denotavam a existencia de uma antiga civilisação mais adeantada.
Junto de um immenso daro elevava-se o templo christão, que era de formosa fabrica de cantaria bem lavrada, com cinco largas naves, todas abobadadas, sete capellas, côro alto, abobadado ao modo dos nossos, e denominava-se egreja de Santa Maria de Syon.
Nos obeliscos, cada um dos quaes de uma só pedra granitica, não se viam hieroglyphos, como em todos os dos egypcios, mas cobriam as suas quatro faces esculturas, que revelavam um cinzel grego.
N'este lugar de Aquaxumo, conforme a tradição dos abexins, fundou-se a christandade da Ethiopia Oriental, e gloriavam-se elles muito de serem os primeiros christãos, que no mundo houve, e de que n'elles se cumprira a prophecia de David.
Sem embargo de tão respeitaveis preeminencias, innumeros eram os erros da sua religião, cheia de superstições grosseiras, e fortemente impregnada de judaismo, com traços de budhismo.
Além de muitos conventos de religiosos, por todo o imperio havia numerosas egrejas, todas com grandes rendas, de que seus ministros viviam.
Em geral, as egrejas, architectonicamente consideradas, estavam de harmonia com as habitações. Situadas em lugares altos, á sombra de copadas arvores, e sómente por excepção em subterraneos, tinham muitas a fórma circular, e as suas portas nos quatro pontos cardinaes. Reconhecia-se facilmente, que não deixaram discipulos os artistas, que trabalharam nos monumentos de Aquaxumo, e ainda outros lugares, sendo attribuidas aos egypcios todas essas obras.
Tinham as egrejas duas cortinas: uma encobria o altar, e d'ella para dentro sómente passavam os sacerdotes; a outra, a meio do templo, limitava o espaço comprehendido entre ambas, reservado para assistirem de lá aos officios divinos o imperador e mais pessoas gradas. Ao povo era defeso entrar na egreja. Ficava á porta fronteira do altar a ouvir missa, e o celebrante não só d'alli lhe ministrava a communhão, que todos os fieis, antes de começar o santo sacrificio, deviam receber, senão tambem lhes lia as epistolas e evangelhos em gheez, que era a lingua lithurgica.
O imperador e os grandes tomavam as ordens de diacono, para poderem ser admittidos no interior dos templos, e haviam de descalçar-se antes do ingresso. Por tal motivo o imperador trazia na mão uma pequena cruz, não como sceptro ou insignia do imperio, senão em signal de ser diacono. De sceptro nunca elle usava, corôa tambem a não punha, nem sahia de cruz alçada, como erradamente se affirmava.
Os frades eram celibatarios, não os clerigos; e até os filhos dos conegos tinham o privilegio de pertencerem á collegiada dos páes.
O matrimonio, porém, não se considerava sacramento, e toda a gente o contrahia com o tacito ou expresso consentimento de se poderem apartar os conjuges, tomando estes logo para isso fiadores, e assim evitavam o espectaculo nada edificante, e as mais das vezes asqueroso, das causas de divorcio.
As cruzes não tinham a imagem de Christo, porque os abexins se julgavam indignos de ver o Redemptor crucificado. Tambem se não mostrava ao povo a hostia consagrada. O vinho para a missa era feito de summo de passas de uvas, deitadas de molho em agua, durante dez ou doze dias, enxugavam-as depois, pisavam-as e expremiam-n'as em um panno. Para a celebração da missa, as vestimentas consistiam em umas como que grandes camisas brancas, na estola furada pelo meio e mettida pela cabeça, e não usavam de manipulo, amicto, nem cordão para se cingirem. Os frades celebravam com o capello na cabeça, e todo o clero a trazia rapada, deixando, porém, crescer as barbas.
Tinham os abexins tanta reverencia pelas egrejas, que nenhum passava a cavallo por deante das portas d'ellas. Apeavam-se, e só tornavam a montar, quando iam já distantes.