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VIII
BOAS NOVAS
Era portuguez o navio, que conduziu Pero da Covilhan e o seu companheiro ao porto de Alexandria. As ondas do Mediterraneo mal marulhavam em torno do costado da embarcação, imprimindo-lhe uma arfagem indolente, e fazendo parecer, que o mar se transformára em um grande lago azul e tranquillo. Ao cabo de uma feliz derrota o navio deu fundo em frente da velha cidade egypcia, uma das mais bellas e graciosas cidades do mundo antigo, e laço de união da Europa com o Oriente.
Estava no periodo da sua maior decadencia a patria de Euclides. A sua bibliotheca celebre, que fôra a maior do mundo, e quasi todos os seus monumentos, que davam brilhante e seguro testemunho da sua antiguidade gloriosa, haviam sido arrasados pelos arabes, no VII seculo.
De todas essas preciosidades historicas restavam unicamente: a columna de Pompeu, denominada Amud-Assuari pelos musulmanos; dois obeliscos, impropriamente chamados Agulhas de Cleopatra, e as catacumbas.
A sudoeste da cidade, marcando o lugar occupado antes pelo Serapeion, ou templo consagrado a Serapis pelos Ptolomeus e um dos centros do saber, no ponto de união da Necropole com o velho bairro egypcio de Rakotis, levantava-se rodeada de palmeiras a columna de Pompeu, testemunha sobrevivente das épocas classicas. Esta obra de arte genuinamente grega mandou um prefeito romano erigir em honra do governador Diocleciano, genio tutelar da cidade, para lhe demonstrar a sua gratidão pelo trigo, com que soccorrera o povo de Alexandria. Era lavrada em syenito, com o sócco quadrado, em que assentava, e o capitel corinthio, onde se erguia a estatua, já mutilado.
As Agulhas consistiam em dois monolithos de granito avermelhado, em parte revestidas com laminas de prata dourada. Foram anteriormente dois monumentos: um, o Sebasteion, em honra de Tiberio; o outro, á gloria de Thutmosis III, quando o Egypto attingiu as culminancias do esplendor, e, por consequencia, seculos antes da fundação da Alexandria no terreno, em que assentava a velha aldeia de Rakotis.
No segundo obelisco viam-se os hieroglyphos, que celebravam o nome d'aquelle Pharaó.
Primitivamente ambos os monumentos tinham sido consagrados a Râ, o deus do Sol, adorado em todo o Egypto, e em um bello templo de Héliopolis mais especialmente, sob a fórma do boi Mnévis. D'esse templo os removeram para Rakotis.
Na extremidade oriental da ilha de Pharo, que os Ptolomeus ligaram á terra firme por meio de um mólhe de cantaria, denominado Heptastadion, campeava ainda o pharol, que mereceu ser contado em o numero das maravilhas do mundo, e realmente maravilha da esplendida capital do Egypto grego.
Era uma torre quadrada, cuja altura excedia muito a da pyramide de Cheops, e que Ptolomeu Philadelpho consagrou a seus páes, mandando-a revestir de marmore branco por Sostrato de Knido. Este architecto celebre gravou o proprio nome sobre o marmore, cobrindo a inscripção de encaustica brilhante, em que traçou o do soberano. O tempo encarregar-se-ia de desfazer o revestimento, pondo a descoberto o nome do vaidoso e desleal artista.
Como a torre ameaçava ruina, em frente d'ella havia principiado outra igual Melik-al-Nasser-Mohammed, nono sultão mameluco do Egypto, da dynastia dos Baharitas, e que tanto animou a agricultura e as artes; mas a morte surprehendeu-o logo, não lhe permittindo executar a sua obra.
Muito de corrida viram tudo isso os nossos viajantes, e pouco mais, pois que uma fébre maligna os prostou.
Ainda mal restabelecidos, subiram ao Cairo, commerciando sempre, por haver successivos mercados desde Alexandria até áquella cidade, e fazendo a ultima parte da jornada pelo Nilo, que vinha descendo n'esta região por entre alegres povoações mui visinhas umas das outras, e corria a pequena distancia da capital do Egypto, a qual demorava na margem direita.
Alguns dias depois de chegarem a este grande centro de commercio, encontráram-se com mercadores de Féz e Tremecem, que seguiam para Aden. Ajuntáram-se á caravana d'esses mouros, e com elles partiram caminho de Tór. D'esta cidade do Hedjaz, pequena, mas graciosa, assentáda á borda do golpho de Suez, ao longo de uma bella praia, navegaram em um zambuco para Suaquem, riquissima cidade da Nubia, na costa africana do mar Vermelho, e d'ahi para Aden.
Pero da Covilhan approximava-se da India; e, sem embargo de haver saído de Rhodes com pouca esperança de dar lá com o Preste João, anciava cada vez mais conhecer a hydrografia do Oriente, e fazer um estudo consciencioso do commercio das especiarias.
Tomára o nome, as ceremonias e os costumes de mouro, mas Deus sabia, que a sua alma era christã e portugueza de lei. A convivencia com os infieis mais lhe arraigava no coração as suas crenças. O seu melhor companheiro, e confidente unico, era a imagem de Thereza, a guiar-lhe os passos, animando-o ao mesmo tempo a proseguir audacioso e firme. Observando tudo com olhos de quem sabia ver, nem uma exclamação nem um gesto eram capazes de trahi-lo, ou de levantar a suspeita, de que não fosse mercador ismaelita.
Quando aportou á bahia de Aden, esta importante cidade maritima da Arabia produziu-lhe viva impressão, que passou completamente despercebida aos olhos dos tripulantes e mercadores que o cercavam.
Defrontou com uma serra mui alta, aspera e crespa, tendo varias quebradas e picos muito agudos, alguns dos quaes fortificados. Ao vê-la assim recortada, lembrou-lhe a serra da Cintra, por parecer-lhe mui similhante. Parte d'ella mettia pelo mar, formando uma comprida peninsula, que talhava duas formosas e largas enseadas, e na de léste espelhava-se a muralha da cidade.
Com effeito Aden, edificada ao sopé da serra, era defendida, para a banda do mar, por um extenso lanço de muro, dividido em muitos pannos por meio de cubellos redondos, e de um lado entestando em uma penha cortada a pique, do outro em um môrro, junto do qual havia um baluarte rouqueiro, cujos tiros podiam varrer a praia. O môrro tornava-se um ilhéo com o preamar, e até ao seu cume, onde estava um castello, subia do baluarte um muro, que torneava o môrro. Por duas portas, ambas juntas, se entrava na cidade, indo da praia; e, por unica serventia do lado da terra, em um caminho aberto na rocha de uma quebrada, havia tres portas consecutivas, protegida cada uma por sua fortificação.
Plana, de boa casaria coberta por terrados, em razão do ardor vivissimo do clima, Aden, para ter agua, precisava de manda-la buscar ás fontes detraz da serra, em ôdres transportados por camêlos e juntar a da chuva em enormes tanques abertos na rocha.
O seu principal commercio consistia na venda de mantimentos, de que sempre estava abastecida. A ella desciam os mercadores arabes com os productos de seus paizes, e d'ella levavam a varios mercados as exportações da India, para as caravanas de Damasco e de toda a Asia menor as passarem á Europa pelo Mediterraneo. Por tal motivo a maior parte das náus contentava-se com chegar a Aden, e não curava de entrar as portas do mar Vermelho.
Como Pero da Covilhan soubesse n'esta cidade, haver na Ethiopia um grande rei christão, e considerasse, que o Préste se chamava das Indias, convencionou com Paiva, proseguir este no caminho da Ethiopia e elle no da India, aproveitando logo a monção. Ficaram todavia de se ajuntar ambos em determinada época no Cairo, e aqui darem mutuamente conta das novas, que alcançassem.
Affonso de Paiva foi, pois, em uma gelva para Zeila, capital de Adel na costa oriental da Africa, e Pero da Covilhan demandou em uma náu mourisca a cidade de Calicut.
Era Pero da Covilhan o primeiro portuguez conhecido, que atravessava o Oceano Indico.
A náu, que o transportava, tinha, como quasi todas as da India, um só mastro sem gávea, aguentado pelos cabos para a borda, e pelas adriças da véla, que os ajudavam para ré. O leme largo e de taboas delgadas governava com gualdrópes para a borda, alados por um e outro bordo. Ligeiramente construida, de poucas cavernas, e forrada apenas exteriormente, seu taboado cozido a cairo, e de igual modo fixo ao cavername, marcava a differença que ella fazia das pregadiças, nas quaes em vez de quilha havia fundo largo.
A véla, de pendão, era um trapézio de amplas dimensões, ligando o punho da amura a uma antenna, que podendo debruçar-se da borda, permittia á náu navegar em melhor linha de bolina.
Por causa da véla, de difficil manobra, tornava-se necessario arrear para cambar de bordo; e, para diminuir superficie, havia no panno uma especie de rizes, parecendo inteiramente desconhecido o uso de monetas.
Nenhum mareante breava a sua embarcação; tornava-a, porém, muito estanque, betumando as costuras do taboado com quil, e untando-as com azeite de peixe, levado á consistencia de sêbo. Assim vedavam tambem os tanques, em que traziam a agua, os quaes consistiam em grandes cubos de madeira com capacidade para trinta ou quarenta pipas, e com as paredes escoradas interna e externamente.
O batel andava atoado, e sómente o mettiam dentro, quando atravessavam da India para o mar Vermelho.
Nas ancoras de pedra ou de madeira rija, na arca da bomba, e em outras particularidades de construcção, esta náu differia muito das portuguezas. Sem coberta, e com a borda feita de esteiras impremiaveis, levava a carga arrumada em compartimentos separados, e resguardada da chuva por folhas sêccas de palmeira, postas em fórma de telhado de duas aguas.
Desprovida de agasalhados, que permittissem aos tripulantes e passageiros abrigar-se, iam, uns e outros, expostos ao tempo, salvo quando o vento soprava muito rijo ou caia alguma chuva, pois que em taes casos recolhiam-se em uma especie de choupana de óla, encostada ao mastro, ou armada a ré, por cima das esteiras de rotas, com que cobriam a carga.
O typo do fogão, em que cada um cozinhava, reduzia-se a uma caixa de madeira, cheia de areia, sobre a qual collocavam tres pedras, que serviam de trempe. O côco, o peixe sêcco e o arroz constituiam os principaes manjares da quotidiana alimentação.
E com embarcações tão frageis, como a succintamente descripta, se fazia a navegação dos mares indicos, durante sete mezes de cada anno, sendo depois varadas nas praias e cobertas com óla, á espera de nova monção.
Hoje, que tão commoda e rapidamente se viaja, mal se comprehende que, sem um movimento superior a impulsiona-lo, Pero da Covilhan fizesse esta travessia em similhantes condições, e nem um momento sentisse desfallecer-lhe o animo!
Que provas de valor, dedicação e lealdade ia accumulando na sua peregrinação arriscadissima, para offerecer ao rei, que o enviára, e a Thereza, por quem tudo soffria resignado!
A viagem continuava sem o menor incidente. Um dia, porém, no Céo, que permanecia sereno, algumas nuvens similhantes a vapores cobreados, corriam por elle com ligeireza superior á das aves, ao passo que sulcavam o mar cinco ou seis vagas longas e crescidas, parecendo-se com cordilheiras de collinas, separadas umas das outras por largos e profundos valles. O vento soltava dos vertices angulosos de todas essas collinas aquaticas uma especie de coma de espuma, em que refulgiam aqui e além as brilhantes côres do Iris, e levantava igualmente redemoinhos, como que de poeira esbranquiçada. Mas o mais terrivel era, que os tôpos d'esses vagalhões com a violencia do vento enrolavam-se sobre si, formando enormes abobadas, espumando e rugindo como féras gigantes iracundas. A náu, sem governo, vogava de capa, e não era senão joguete do vento e das ondas. Subia essas serranias inclinada sobre um dos bordos, quasi virada, chegava ao cimo, equilibrava-se, e descia depois rapidamente com egual perigo o lado opposto, em quanto se escoava, saindo por debaixo d'ella como de uma comporta, um largo lençól de espuma.
Se fosse muito duradoura esta tempestade medonha, esta borrasca sêcca, mas horrenda, a fragil embarcação sossobraria irremediavelmente.
Salvou-se!
Com a sua bandeira verde içada no tópe do mastro, a náu arribou a Cananor, para fazer aguada e tomar lenha.
A doze legoas para o Sul na mesma costa do Malabar, demorava Calicut; e, por ser a costa mui limpa, a náu, depois de refrescar, seguiu perto de terra o seu rumo com terrenho galerno e perfumado a enfunar-se na véla.
Chegou Pero da Covilhan a Calicut. Cananor pouco abalo havia produzido no seu espirito. Calicut deslumbrou-o. Tinha deante de seus olhos a opulencia e a belleza da primeira cidade do Malabar, e a sua phantasia, que lhe pintára com as côres mais vivas a vegetação luxuriante da India, não o illudira, pois o maravilhoso painel, que estava contemplando, era superior ainda ao que a sua imaginação havia sonhado.
Em um vastissimo jardim á beira mar, com arruamentos arbitrariamente traçados, estava disseminada a casaria da cidade, sobresaindo os mais nobres edificios no meio das alfombras odoriferas dos canteiros, das hortas viçosissimas e dos palmares giganteos. Junto da praia as palhotas dos pescadores mucuás, e em lugares apartados as dos pobres poleás, a gente baixa e vil, eram a sombra do quadro, em que resplandecia a sumptuosidade dos pagódes, a elegancia das habitações nobres, e a magnificencia dos paços do rajah, que rematavam a cidade a grandissima distancia da praia.
A cada passo via Pero da Covilhan nas ruas os vaidosos naires, com suas espadas núas e rodellas uns, outros com lanças, e ainda outros com arcos e frechas; e os poleás a bradar, para que os naires se desviassem, ou a fugir, quando topavam com elles de subito, pelo receio que tinham de serem suas victimas.
Passavam pelos naires, e podiam até toca-los, os brahmanes. Estes traziam a tiracólo o seu distinctivo de religiosos, o qual, dos sete aos quatorze annos, consistia em uma correia de pelle crua com pêllo de uma especie de jumento silvestre; e, dos quatorze por deante, em uma fita de linha dobrada de tres fios, com a largura de dois dedos, como a correia.
Tambem os nobres saíam á rua em andores, que, conforme o seu tamanho, dois ou quatro escravos levavam aos hombros. O nobre ia assentado ou deitado, ordinariamente mascando o seu béthel, e resguardando-o do sol ou da chuva um sombreiro seguro por um escravo, a que os malabares chamavam boi.
Os naires não se limitavam unicamente a prohibir aos poleás, que se approximassem d'elles. Mais ainda. Como o poleá era o escravo e o trabalhador encarregado do amanho das terras, o naire dava-lhe as suas ordens a uma certa distancia, indo immediatamente depois lavar-se, mudar de fato, purificar-se. E mantinha-se tanto esta differença de castas, que um poleá nunca podia remir o peccado original do nascimento. Nascia villão, havia de morrer villão.
Taes costumes dos gentios impressionaram vivamente o coração generoso de Pero da Covilhan.
O commercio do Oriente estava nas mãos dos mouros, cujas embarcações eram por isso os unicos meios de communicação entre os diversos portos.
Pero da Covilhan, que necessitou de lançar-se n'esse trafico, não podia fazer itinerarios á sua vontade, e accommodava-se ás circumstancias tirando d'ellas todo o proveito.
Foi assim que logrou vêr Gôa, a guerreira capital do reino do Sabaio; Ormuz, o emporio commercial do golfo persico; e Sofála, a rica cidade da Africa meridional, aonde affluiam os mercadores, para o resgate do ouro das minas de Monomotapa.
Restava-lhe obter noticias positivas ácerca de Préste João; mas contava, que lh'as désse Affonso de Paiva, o qual, como vimos, fôra á Ethiopia com o cuidado de as trazer. Voltando, pois, ao Cairo, conforme havia aprazado com o seu companheiro, soube alli, que este fallecera.
Tal acontecimento foi a primeira contrariedade séria da sua viagem. Com os vagos conhecimentos, que adquirira, a respeito da existencia do Préste, não se animava a regressar a Portugal. Parecia-lhe, que não saciaria com tão pouco os vehementes desejos de D. João II, n'aquelle ponto.
– De muito pósso eu já dar conta a el-rei; mas não de tudo quanto me incumbira… – pensava Pero da Covilhan.
Chegou a hesitar um momento na resolução, que deveria tomar, e mais conviria ao serviço de seu real amo.
N'esta conjunctura apparecem-lhe inesperadamente dois judeus portuguezes, que o buscavam e que para saberem d'elle na bella cidade de Amron, na opulenta rainha mussulmana do Oriente, no labyrinto immenso d'essa Babel, em tão embaraçosas situações se viram, que tiveram por vezes perdida a esperança de encontra-lo.
Em boa hora vieram. Um d'elles era o rabbi Abraham, natural de Beja; o outro, Joseph, de Lamego; ambos mensageiros de D. João II.
– Á procura de vós andavamos! – exclamou o rabbi, ao dar casualmente com Pero da Covilhan.
Este ao ouvir, pela primeira vez, fallar a sua lingua no Cairo, experimentou um prazer novo, uma sensação gratissima, e respondeu:
– Aqui me tendes, e muito me praz vêr-me tão longe da patria com portuguezes. O que me quereis, e a que vindes?..
Abraham, entregando a Pero da Covilhan as cartas, que para elle trazia, de D. João II, disse-lhe:
– Eu e o meu companheiro Joseph, mensageiros de el-rei somos, como por essas cartas vereis. Lêde-as, pois, e ellas nos acreditarão.
– E como podéstes reconhecer-me, no meio d'esta Babylonia?.. – perguntou Pero da Covilhan.
– Guiou-me principalmente a cicatriz, que tendes nas costas da mão esquerda… – respondeu Abraham, apontando para ella.
– Nem este vestigio das minhas travessuras de creança escapou a el-rei meu senhor!.. – replicou Pero da Covilhan, sorrindo.
– Além d'isso descreveu-me el-rei com tanta precisão a vossa physionomia, que não era facil enganar-me, apesar de terdes a barba algo crescida.
Nas cartas, que Pero da Covilhan recebeu, ordenava-lhe D. João II, que fosse mostrar a cidade de Ormuz ao rabbi, e que, se não estivesse ainda bem instruido de tudo a que fôra, mandasse pelo judeu Joseph novas do que sabia, não devendo voltar ao reino sem ter visto o Préste João.
Joseph observou, que, tendo visitado já a cidade de Bagdad, ouvira lá fallar muito de Ormuz, e de como vinham ter as especiarias e riquezas da India ás cidades de Alépo e Damasco. Do que vira e lhe informáram, fizera depois a narrativa a el-rei, que muito folgou, e lhe déra protecção, para emprehender esta nova viagem, que concertára com o rabbi.
– De tudo estou inteirado – disse Pero da Covilhan. – A vós, Joseph, vou immediatamente despachar com cartas para el-rei, meu Senhor; e – voltando-se para Abraham – comvosco tornarei a vêr Ormuz.
N'aquellas cartas, de que foi, com effeito, portador o judeu de Lamego, fazia Pero da Covilhan miuda relação da sua visita aos principaes portos, que serviam de escala ao commercio oriental, e onde verificára, que a corrente d'este entrava pelo mar Vermelho, indo concentrar-se em Alexandria, seu principal deposito, de que tinham os feitores de Veneza a pósse, garantida por tratado com o sultão do Egypto.
A respeito do porto de Calicut informava que de lá saíam, não só as especiarias, senão tambem tudo quanto a India exportava de mais rico, attrahido áquella cidade pelos seus mercadores, os mais poderosos e opulentos mouros do Malabar.
Enaltecia a importancia de Ormuz, dizendo, que era a India annel valiosissimo, e Ormuz a pedra preciosa engastada n'elle.
A proposito encarentava as bellissimas perolas de Bahrein, as esmeraldas de Bagdad, as turquezas de Exaquirimane, os carbunculos ou rubis de Pegu, as espinellas de Ceylão e Cananor, e os diamantes da Golconda.
Mostrando com numerosos factos, que tudo no Oriente era grande, assombroso, parecendo que Deus se havia esmerado em alli conservar eternamente um reflexo brilhante da sua Omnipotencia, fechava Pero da Covilhan uma das suas cartas com a seguinte informação: «Navegando-se pela costa da Guiné adeante, chega-se ao termo do continente: persistindo na derrota para o Sul, e logo dobrando a costa no Occeano indico, o melhor rumo é demandar Sofála, ou uma grande ilha, que os mouros chamam da Lua (Madagascar), e fica mais para a banda do Sul». E addicionou: «em Sofála me foi asseverado pelos mercadores mouros, que dos máres da Guiné se póde navegar para a India».
Em outra carta, na qual dava noticia da morte de Affonso Paiva, communicava tambem, que, emquanto andou pela India, sómente em Cananor ouvira fallar no Préste João, affirmando os mouros, «que este rei christão estava tão longe mettido nas suas terras, que não sabia, que cousa era gente do mundo, e que para ellas ia-se pelo mar Vermelho». E, posto que os mouros não déssem a esse rei o nome de Préste, como já no Cairo e em Aden haviam contado a elle Pero da Covilhan muitas cousas do rei abexim, de ser christão, trazer cruz alçada, e possuirem seus estados alguns mosteiros de religiosos, «se veiu a persuadir, que não tinha para que passar adeante, a buscar o que não sabia que houvesse, tendo tão pérto o que lhe diziam que na Ethiopia havia». Cumprindo, pois, as ordens de Sua Alteza, ia mostrar Ormuz ao rabbi Abraham, e na volta procuraria em pessoa o Préste.
Despedido o judeu Joseph, que partiu logo em direcção a Portugal com as cartas e outros documentos, Pero da Covilhan e o rabbi subiram a Aden, e d'este porto sahiram para Ormuz.
Quantas vezes assaltaram Pero da Covilhan ardentissimos desejos de conversar largamente com o seu novo companheiro ácerca da vida intima da côrte portugueza!..
O que poderia, porém, saber d'ella o rabbi?..
Continuava, pois, Pero da Covilhan a ser o confidente de si proprio; e a esperança, que mais lhe sorria agora, de ver seus sonhos de gloria realisados, era o melhor lenitivo da sua saudade.
– Que prazer não sentirá Thereza, quando souber, que mandei dizer a el-rei qual é o caminho da India pelo mar!.. – repetiam os echos da sua alma radiante e apaixonada.
E o infatigavel explorador lá foi de novo atravessar as aguas do mar d'Oman.