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IX
CONSTANCIA
Nunca na côrte portugueza se prestou mais livre, menos recatado culto ao espirito, á elegancia, e á formosura da mulher, do que durante os primeiros nove annos do curto reinado de D. João II. Os serões do paço eram exhibição permanente de requebros, de arrufos, de ironias, de motejos deliciosos.
Depois que Pero da Covilhan saíu de Portugal, Maria Thereza tinha uma repugnancia invencivel em assistir a esses passatempos, e, quando apparecia, era unicamente por obediencia.
Ainda em Santarem, uma noite folgava, como de costume, a mocidade fidalga nas salas do palacio real. Os cortezãos, que, nada tendo em geral a contemplar na sua alma, por a trazerem sempre vasia de affectos e attestada de egoismo, a tudo estão attentos, reparavam, que a Maria Thereza faltava a sua natural animação, aquelle seu ar de interessar-se pelo que a cercava; e não sabiam explicar, como ella nem sequér encobria o seu incomprehensivel e subito recolhimento.
Maria Thereza, com effeito, quasi não era senhora de si, para antepôr ás suas meditações, porventura chimeras muito queridas, o cuidado de transigir um tanto ao menos, com as hypocrisias da côrte, para se não tornar intratavel.
Os seus adoradores, que eram muitos, perguntavam uns aos outros: o que terá Maria Thereza, ainda ha pouco tão leda e desenvolta, critiquizando maliciosamente os assumptos de nossas trovas, ouvindo e applaudindo com riso franco e jovial nossos apodos, e agora tão calma, e lenta em animar-se?!..
– E o mais estranho – observou Pedro de Barcellos – é, que não occulta o seu mau humor, quando algum de nós tenta galantea-la!..
– Até se torna menos sombria, e fica logo quasi alegre, quando se insiste… – accrescentou Jorge da Silveira.
– De experimentados fallais ambos!.. – atalhou D. João de Menezes
– Quem não hade gostar de Thereza!.. – tornou Pedro de Barcellos.
– Toda a côrte sabe, que ella é a predilecta da rainha, com quem réza diariamente, horas esquecidas!.. Váe caminho do claustro a formosa menina!.. – exclamou Gonçalo da Fonseca.
Apesar da sua edade, já um pouco avançada, Gonçalo da Fonseca amava a convivencia dos môços, e estes, como elle era de pequena estatura, chamavam-lhe Gonçalinho. Dava-lhe prazer esse tratamento, não só por ser affectuoso, mas porque lhe recordava uma amabilidade de D. João II, tão propria do caracter d'esse soberano, como o leitor vae vêr.
Um dia Pedro da Silva, commendador-mór de Aviz, chamou-lhe Gonçalinho na presença do rei. Este não tomou o diminutivo por signal de confiança, senão por gracejo deprimente, e disse, com um modo muito sêcco, a Pedro da Silva: «se vós vos tomardes com elle, hade parecer-vos Gonçalão».
Este Gonçalo da Fonseca tinha sido embaixador de D. Affonso V junto dos duques de Borgonha, e D. João II mandou-o com Diogo de Azambuja, Duarte Pacheco, e outros, erigir a fortaleza da Mina.
Voltemos, porém, ao ponto.
A conversação continuou, trocando-se ditos maliciosos e crepitantes, ácerca dos mais fallados galanteios da côrte, e prolongou-se, até que, apparecendo Garcia de Rezende, se deu principio ao jogo dos naipes.
Maria Thereza, a quem no meio das reflexões serias, que lhe tomavam a alma, os vãos discursos ceremoniosos, que ouvia em volta de si, pareciam mais desagradaveis ainda, havia chegado a uma janella aberta sobre um jardim. Fôra alli respirar o perfume das flôres, e esse prazer parecia infundir algum alento em seu coração entristecido. Estava fazendo confidentes suas as florinhas, as quaes, por seu turno, como que lhe agradeciam a confiança, embalsamando cada vez com mais delicia o ar que ella respirava. De vez em quando voltava-se para a sala, por estar sempre de alcatea, não a chamasse a camareira-mór, que sobre ella exercia a mais particular e carinhosa vigilancia, muito recommendada pela rainha.
Em um d'aquelles movimentos, Maria Thereza viu Pedro de Barcellos a dirigir-se para a janella. Ficou contrariada, e pelo seu pensamento passou rapidamente a seguinte exclamação: – infeliz lembrança!.. E tenho de attender com fingido agrado este importuno!..
Ao mesmo tempo no cérebro de Pedro de Barcellos cruzava-se um tropél de duvidas, de esperanças, e de receios, ao passo que o seu coração se debatia em ancias de tranzido amor.
O apaixonado môço cumprimentou Maria Thereza, mas sem poder dizer-lhe: – como sois bella!.. que expressão de pensamento profundo!.. que physionomia angelica!.. – e tantas outras phrases de admiração e amor, que lhe estavam a saltar dos labios, e os echos da alma lhe repetiam.
Enlevado na contemplação da formosura celeste de Maria Thereza, e não logrando evitar, que fosse trahido pelo olhar ardente, com que a fitava, rompeu o curto silencio, que se seguiu aos reciprocos cumprimentos, com esta interrogação banal:
– Não vos interessa o jogo dos naipes?
– É sem duvida um gracioso invento de Garcia de Rezende; mas não me praz tomar hoje parte n'essa diversão – respondeu Maria Thereza.
– Por melhor que fosse a sorte que vos saisse, seria sempre inferior á que mereceis…
– Lisongeiro!.. E porque não ides tambem tirar uma carta?..
– Porque da minha sorte sómente vós podeis decidir… – retorquiu com certa intimativa Pedro de Barcellos.
– Eu!?.. Grande poder me confiais!..
– E não o quereis?..
– Para quê?..
– Para me libertardes da sujeição em que me trazeis…
– Pois crêde, que não tinha a consciencia da minha tyrannia…
– É que não quereis comprehender o olhar, com que vos admiro…
– Devaneais, primo!
– Acaso tão pouco vos mereço, que mal pareça ser vosso servidor? – instou Pedro de Barcellos com forçado sorriso.
– Quem, como vós, pode fazer pontaria a grandezas, e leva a palma aos mais vaidosos em prendas de cortezão, seguro deve estar de seus merecimentos… O ar, com que fizestes essa pergunta, manifesta bem que tendes a consciencia d'elles… – redarguiu com reflexiva gravidade Maria Thereza.
– Devem de certo ser brilhantes á luz da vossa phantasia primorosa; prefiro, porém, ás gentilezas do vosso espirito os apreços do vosso coração. Se me não julgais indigno de vós, porque não acceitais o amor que vos offereço?..
– Porque nunca poderia corresponder-lhe.
– Condemnais-me, pois, a um desprezo eterno?..
– Não sejais injusto. Não vos desprézo, estimo-vos.
Convém recordar que, nos frequentissimos galanteios da côrte de D. João II, os versos eram o preludio do amor. Por isso Pedro de Barcellos replicou a Maria Thereza:
– Agradeço a vossa estima, e sobre todas muito a prézo; mas ficai certa, de que sem o vosso amor jámais poderá haver para mim ventura n'este mundo:
«Por mais mal que me façais
nunca mudar me fareis
até que não me acabeis.
Minha fé, minha firmeza
Em vosso poder está;
soffrerei minha tristeza,
pois vossa mercê m'a dá.
E meu bem nunca fará
mudança, nem a vereis,
até que não me acabeis.»7
– Bello villancete, primo!..
– Não me pertence. Exprime, porém, com tanta verdade o que sinto, que me lembrei de recita-lo…
– E não tendes prezente composição alguma vossa?..
– Porque m'o perguntais?.. Poderia ella porventura agradar-vos?..
– Não vos disse já, que vos estimo?..
Este colloquio ia tomando uma phase mais amena, e Pedro de Barcellos, depois de grande hesitação, e com um receio immenso de ser desagradavel a Maria Thereza, confessou-lhe francamente, que se demorava em Portugal por causa d'ella. Protestou-lhe, que não tinha, nem teria nunca outro desejo mais ardente, senão o de consagrar-lhe a vida inteira, se esse anjo de graça e de bondade acceitasse a offerta sem reserva, que lhe fazia d'ella; e terminou, perguntando-lhe com a maior formalidade:
– Porque me não concedeis a vossa mão?..
– Porque não pósso, primo; e rogo-vos, que não insistais… – respondeu Maria Thereza com ar tão nobre e de tão expressivo desengano, que impôz o maximo respeito a Pedro de Barcellos.
Este, reconhecendo que seria importuna e pouco delicada qualquer instancia, disse a Maria Thereza:
– Pois bem, prima; vou recitar-vos uma composição minha, de que ninguem mais saberá, senão vós.
E, com o coração amargurado, recitou Pedro de Barcellos o seguinte villancete:
Aqui, onde vou deixar-vos,
esse vosso doce olhar
nunca me verá tornar.
Para o mar vou sem ventura,
sendo mais vosso cativo!
Serei morto, sendo vivo,
sem ver vossa formosura,
pois que a minha sorte dura
de vós me quér apartar
para nunca mais tornar.
E se bem, que me confórte,
esperar me não é dado,
melhor é ditosa morte,
que viver desesperado.
Acabe assim o cuidado
de sómente em vós cuidar,
e no vosso doce olhar!..
– É realmente mimoso o vosso villancete, e muito pesar tenho, de que não o divulgueis, pois n'elle se revela um dóte mais do vosso aprimorado espirito… Está-me chamando a camareira-mór!.. Quando regressais á ilha?.. Crede, que fico sendo-vos muito affeiçoada…
Maria Thereza cortou assim o dialogo, que lhe parecia ter sido já demasiado longo.
Ácerca d'ella pouco mais accrescentarei. Distinguia-se na côrte pela extrema bondade de caracter, alliada a uma prudencia tão singular, como precoce. Da sua belleza peregrina basta dizer, que a todos agradava, e isto melhor a explica, do que a mais completa das descripções. A sua orphandade contribuia tambem para ella merecer as geraes sympathias, de que gozava; mas quem verdadeiramente a extremecia era a rainha, a qual muitas vezes pensava com certa tristeza na possibilidade de perder um dia o primeiro lugar, que sempre tinha occupado no coração diamantino da sua filha adoptiva.
D. Leonor ignorava ainda, que Pero da Covilhan lhe havia roubado essa primazia.
Pedro de Barcellos tentou requesta-la. Teve, porém, de conformar-se com a sua recusa formal. A seriedade da mulher digna impõe-se irresistivelmente ao respeito do homem. É uma arma poderosa, com que a mulher se defende contra os perigos sociaes, e, quando sabe servir-se d'ella, triumpha e domina.
Pedro de Barcellos, ou Pedro Pinheiro de Barcellos, tinha o genio aventureiro da sua época. Era dominado por um pensamento constante, que se reflectia do seu amor á gloria. Oriundo da ilha de Barcellos, havia passado á ilha Terceira, poucos annos depois de descoberta, e foi um dos primeiros povoadores d'essa joia do formosissimo archipelago açoriano.
Com o illustre flamengo Jacome de Bruges, primeiro capitão donatario d'essa ilha, tinha ido a povoa-la Gonçalo Annes da Fonseca, cavalleiro muito nóbre da cidade de Lagos, ao qual coubéram na partilha, que se fez, das terras da Terceira, as dilatadas campinas, que se extendem entre Porto Martim e os Paues das Vaccas. Tomou Gonçalo Annes posse da sua data, que era um grande condado, e voltou a Lisboa, d'onde regressou á ilha já casado com D. Mecia Annes de Andrade, filha do doutor João Machado, descendente legitimo da casa dos Ricos-homens de Entre Homem e Cavado, e por consequencia tambem rico-homem. – No principio da monarchia era essa a maior dignidade depois da Real, e aos que a possuiam, não só o rei lhes chamava primos, senão tambem estavam cobertos e assentados na sua presença; e não tomava o soberano deliberação alguma assim nas cousas da paz, como nas da guerra, sem o conselho d'elles.
Do consorcio de Mecia de Andrade com o illustre algarvio Gonçalo Annes da Fonseca houve quatro filhos e cinco filhas, sendo o primogenito o primeiro varão, que nasceu na Terceira.
Adoptaram todos o patronymico Gonçalves de seu páe e o appellido Machado de sua mãe, pois que foi estylo observadissimo até o reinado de D. Manoel, ou, com mais rigor, até o de D. Duarte, tomarem os filhos por sobrenome o nome proprio de seu páe: assim João, filho de Fernando, chamava-se João Fernandes; Fernando, filho de João era Fernando Annes ou Joannes.
Pedro de Barcellos, havendo-se enamorado de Ignez Gonçalves Machado, primeira filha de Gonçalo e Mecia, veiu a Portugal, sob o apparente pretexto de visitar seu páe, então alcaide-mór de Barcellos, e os seus parentes, que eram as principaes familias do Minho; mas em verdade com o proposito firme de apresentar a D. João II um plano, cuja realisação era o seu sonho aureo.
Teve, com effeito, Pedro de Barcellos o melhor acolhimento de D. João II, a quem propôz sondar á propria custa os mares do Occidente, com o intuito de descobrir novas terras.
Na mente aventurosa de Pedro de Barcellos refervia o desejo vehementissimo de saber, d'onde vinham os troncos de arvore, os pedaços de madeira lavrada, as canôas e até os cadaveres de homens de physionomia estranha, arrojados a miude aos mares do archipelago açoriano. E tendo elle abandonado o seu já então pittoresco Minho, para ir tentar fortuna em uma ilha, embóra fertilissima, não era proprio do seu espirito entregar-se ás delicias de Capua, e ser insensivel ás provocações seductoras do mar, que o cercava. Embarcado imaginaria elle muitas vezes, que estava, quando na calada da noite accordasse attonito sobre o seu leito, embalado pelas terriveis e frequentes convulsões do sólo.
Quiz, pois, expôr-se aos perigos de uma navegação longa, e D. João II, animando-o, fez-lhe todas as concessões desejadas.
Entretanto, vendo Maria Thereza na côrte, ficou tão impressionado pela sua formosura, que, durante alguns dias, abafou no coração o sentimento, que já lhe havia sido inspirado por Ignez, e chegou até a olvidar, posto que momentaneamente, que tinha com ella a sua palavra compromettida. A nobre attitude de Maria Thereza fê-lo reflectir, e despertou-lhe no coração os seus brios de homem digno.
Despachado por D. João II, foi ao Minho visitar a sua familia, sendo recebido com particular carinho no solar de Entre Homem e Cavado, e tornou logo para a Terceira.
Pouco depois de ter chegado á ilha casou com Ignez Gonçalves Machado, e tratou de construir e armar um navio. Havendo dois filhos de sua mulher, largou da bahia de Angra em fins de 1491, e sómente concluiu a sua viagem em 1495, depois de ter descoberto a costa do Labrador.
Ora, como Christovam Colombo partiu de Palos tambem para o Occidente, em 3 de agosto de 1492, Pedro de Barcellos aportou naturalmente primeiro do que elle a uma região do Novo Mundo. E assim succedeu, com effeito. O facto, porém, não projecta de modo algum a mais tenue sombra na gloria perduravel do insigne genovez pelo seu descobrimento, que comtudo em nada o torna superior ao nosso Pedr'Alvares Cabral, a quem a patria não fez ainda a devida justiça.
Voltando á Terceira, pouco tempo sobreviveu Pedro de Barcellos aos longos e penosissimos trabalhos da sua arriscada viagem. Para premiar seus serviços tomou o rei D. Manoel por seu vassallo um dos filhos do fallecido navegador, concedendo-lhe excepcionaes privilegios em carta passada em Evora, a 7 de junho de 1509. Por cartas dadas igualmente em Evora, a 20 de novembro de 1533, e por outra em Almeirim, a 22 de fevereiro de 1541, concedeu D. João III brazão de armas a tres descendentes legitimos de Pedro de Barcellos, com todas as honras e privilegios de nobres e fidalgos, por procederem da geração e linhagem dos Machados, por parte de sua mãe e avós.
Repeso talvez de não ter feito o sacrificio de attender a proposta de Colombo, D. João II acceitou com jubilo a de Pedro de Barcellos, no desempenho da qual nada dispendia. Tranquillo por esse lado podia continuar nos preparativos de passar de novo á Africa, e chegar-lhe-iam entretanto novas da India, ou Pero da Covilhan estaria de volta.
Parece, porém, que a justiça divina déra a D. João II, para expiação de suas culpas, o martyrio de lhe mostrar, que era possivel a realização das suas maiores ambições; isto é; atravessar o Oceano Atlantico e levar á India as caravélas portuguezas; comtudo não lhe pertenceria a gloria de resolver esses dois problemas.
Colombo chegára a Portugal muito antes de Pedro de Barcellos; Bartholomeu Dias transpozéra o Equador, dobrára o cabo da Bôa Esperança, e chegando quasi a respirar as auras embalsamadas do Oriente, foi obrigado a recuar, impellido pela mão mysteriosa do destino. É que muito embóra dois navegadores portuguezes houvessem podido sondar mares desconhecidos, era-lhes vedado frustrar os designios insondaveis da Providencia. A condemnação, a que D. João II estava sujeito, havia de reflectir-se nos seus agentes.
Como se explica a presença de D. Manoel no acto da despedida de Pero da Covilhan, em Santarem?
Por que razão havia de D. João II confiar a seu cunhado, que nenhum interesse directo podia ter nos descobrimentos, aquelle alto segredo do Estado?
Mais ainda. Um astrologo hebraico prognosticou a D. Manoel, que seria o successor de D. João II na corôa. Quem poderia dar credito ao visionario, quando na familia real existia um herdeiro necessario, e ainda outros com mais direito do que D. Manoel? E com que reservado intento concedeu D. João II a D. Manoel uma esphera por empreza, cuja alma era: Spera in Deo? Não parece ser um presentimento muito singular?..
X
TENTANDO AS AZAS…
Recebeu D. João II as cartas, que lhe escrevera Pero da Covilhan. Occultava-se na singella narrativa do explorador um enthusiasmo, que sómente podia ser egualado ao jubilo immenso por ella produzido na alma anciosa do monarcha.
Ao terminar a leitura, exclamou D. João II a meia voz:
– Não ter Bartholomeu Dias, podido avançar!..
Reservando para si as informações ácerca da India, mandou logo espalhar a nova da existencia do Préste. E, como ás novas alegres ordinariamente se dá credito antes de sujeitas a exame, esta correu logo de bôca em bôca, e foi tão bem recebida e festejada, que não só no reino, mas na Europa, acclamaram por Préste João da India o imperador da Ethiopia.
Estava assim satisfeita uma das maiores aspirações d'esse tempo – o apparecimento d'aquelle personagem legendario; e ninguem pensava em ir á India pelo mar, excepto D. João II e Colombo; este, porém, navegando pelo Occidente.
Quem entre todos teve puras e santas alegrias, foi Maria Thereza. A esperança de ver chegar Pero da Covilhan coberto de gloria, sorria-lhe agora mais viva, amaciando-lhe simultaneamente os rigores da saudade.
Approximava-se o casamento do principe D. Affonso com a filha dos reis catholicos. D. João II, extraordinario em tudo, preparava para a celebração d'aquella solemnidade as mais apparatosas festas, servindo-lhe de modelo as de seu tio o duque de Borgonha, em Lille.
A côrte estava então em Evora, porque de Lisboa a trazia afastada a peste.
No paço da velha cidade transtagana, faltava uma casa apropriada para banquetes e consoadas. Não era uma difficuldade. O já mutilado convento de S. Francisco dava para tudo.
Antes de D. Affonso V ir a Castella, pediu aos frades as casas de seus estudos para sair d'ellas ao campo; e, como gostou do sitio, tornou a pedir grande parte do convento e da horta, para no espaço occupado por essa parcella da residencia fradesca, mandar construir os paços reaes.
Continuando esta obra, D. João II ainda obteve mais, e cortou tão largamente, que ficaram os frades postos no maior apêrto.
Esta amplificação dos paços, acanhando o convento, foi necessaria para se fabricar a sala dos banquetes – aquella sala de madeira,
Um dos franciscanos, exprimindo os sentimentos da communidade, maguada do seu captiveiro e da liberdade alheia em cortar pelo convento, exclamou um dia em tom prophetico: «Quem viver verá, que os mortos, que isto deram a S. Francisco, hão de clamar e pedir justiça a Deus. Agora vão fazer-se festas, que se hão de tornar em pranto!..»
E, como se fôra acho de si mesmo, repetiu o franciscano: – «Quem viver verá!..»
A verdade é, que se não enganou.
Nem fr. João da Povoa, confessor do rei, e Vigario Provincial, poude pôr côbro ás regias extorsões, contra que se levantavam as jeremiadas do espoliado cenóbio eborense. D. João II nunca fôra attreito a sensibilisar-se com lamentações de frades.
A construcção da sala de madeira foi dirigida por Andrea Contucci, a quem o rei tinha confiado reedificar e decorar os paços.
Contucci, mais conhecido pelo nome de Sansovino, o do lugar do seu nascimento, fôra enviado a Portugal por Lourenço de Medicis, a quem D. João II pedira um dos mais notaveis artistas da republica florentina.
Andrea Sansovino era môço ainda, quando veiu a Portugal. Havia já revelado o seu talento; mas unicamente com a sua segunda maneira, iniciada depois de ter chegado a Roma, em 1509, conquistou o lugar, que tão merecida e distinctamente occupa na historia da Arte.
Em architectura fôra discipulo de Cronaca; mas o bom exito de alguns trabalhos seus, como o vestibulo da egreja de San-Spirito em Florença, não o impediu de cultivar de preferencia a esculptura, para a qual tinha a mais pronunciada vocação.
O seu primeiro mestre havia sido Antonio Pollaiolo, o assassino de Domenico Veneziano, que lhe tinha ensinado o processo da pintura a oleo, ainda ignorado na Toscana, ou ao menos assim o presumira Pollaiolo. Vê-se bem, qual foi, pois o móvel do crime.
O scelerado artista era correcto no desenho, e sobretudo esmerava-se na pintura do nú, lisonjeando d'este modo o gosto de Lourenço de Medicis, seu patrono, cuja protecção mais se accentuou depois que Pollaiolo fundiu a bella medalha commemorativa da conspiração dos Pazzi, da qual Lourenço o Magnifico se salvou milagrosamente.
O Mecenas de Pollaiolo favorecia com a sua poderosa influencia o triumpho simultaneo do Paganismo, do Naturalismo, e até do Sensualismo, na maioria dos productos da intelligencia humana; e, sem embargo de have-lo proclamado grande protector das lettras a universidade de Pisa, por elle fundada, o seu consulado fórma um periodo tristemente memoravel para a historia dos costumes, das artes e das proprias lettras.
É provavel, pois, que este aprendizado de Sansovino na officina de Pollaiolo determinasse a escolha de Lourenço de Medicis, para satisfazer o empenho de D. João II.
Na esculptura decorativa dos paços d'Evora, imprimiu Sansovino o cunho do seu privilegiado talento; e, na ornamentação das salas e aposentos da familia real, tocou o requinte do seu peregrino gosto artistico.
D. João II avivou com a magnificencia, e o deslumbramento das festas de Evora, as recordações do periodo medieval.
Não satisfeito por expedir por mar e por terra, agentes seus ao extrangeiro, para comprarem os brocados, as sedas, as tapeçarias, as pedras preciosas, um sem numero emfim de objectos necessarios e de luxo, mandou publicar, que tinham entrada livre de direitos em Portugal até ao termo dos festejos, todas as mercadorias de importação. Os fidalgos da côrte foram vestidos á custa do real thezouro; recebendo além d'isso, os que tomavam parte nas justas, armas e cavallo; e os que entravam nos mômos e entremezes, cem a duzentos cruzados. Egualmente foi dado vestido e dinheiro aos mouros e mouras do reino, bem como ás mais galantes raparigas e foliantes mocetões do Alemtejo, que vieram com suas danças, toques e descantes concorrer todos para o luzimento e alegria das festas.
O proprio rei, franqueando ao povo a entrada na sala de madeira, appareceu-lhe invencionado no phantastico cavalleiro do cysne, o poetico aventureiro das margens do Rheno; e por outro cavalleiro mandou ler, e depois entregar á princeza, sua nora, um bréve, em que propunha a tenção de a querer servir nas festas do seu casamento, e sobre certas conclusões de amores, que defendia, desafiava em honra d'ella, para justar com seus oito mantedores, a todos os que o contrario quizessem combater.
Singular caracter o d'este monarcha!
Á carinhosa rainha D. Leonor não eram, nem podiam ser indifferentes os preparativos para a solemnidade imponentissima do casamento de seu unico filho; comtudo não a distrahiam do pensamento, que enchia de gôzo intimo a sua alma enlevada e contemplativa – a fundação da misericordia de Lisboa.
Tão piedosa e santa idéa fôra-lhe suggerida pelo seu confessor frei Miguel de Contreiras, ornamento da ordem religiosa da SS. Trindade.
De visita ao seu mosteiro de Santarem havia chegado a Evora o douto e humilde trino, e veiu encontrar a sua augusta penitente, lendo o Evangelho de S. Matheus, cuja doutrina era um orvalho celeste, que penetrava no coração da devota rainha, para o purificar e tornar fecundo.
– Embóra vindes, fr. Miguel!.. – disse a rainha ao receber o trinitario, que com profunda reverencia lhe beijou a mão. – Sentae-vos que muito desejo ouvir-vos ácerca da vossa Misericordia…
– Da de voss'alteza: quereis dizer… – ponderou Contreiras.
– Pois seja de ambos nós – tornou D. Leonor, – ou melhor: de Deus será esse arbusto, que vamos plantar, e que se fará – assim o espero da protecção divina – arvore frondosa, cuja sombra abrigará muitas miserias…
– Tenho fé, em que succederá, como voss'alteza espera… O terreno, em que váe fazer-se o plantio, é feracissimo, e a cultura não podia o Senhor confia-la de melhores mãos…
– Mãos de peccadora…
– Purificadas nas boas obras… – atalhou Contreiras.
– Se o Redemptor nos ensinou a enchugar as lagrimas, a dar allivio ás miserias, remedio ás necessidades, amparo e consôlo ás fraquezas, porque não hade aproveitar-nos essa lição?.. Porque não seguir o exemplo do Divino Mestre?..
– Até, porque Elle nos promette a recompensa, permittindo-nos um santo interesse nas acções boas que praticamos. «Bemaventurados os misericordiosos, porque elles alcançarão misericordia».
– Antes de vós chegardes, estava eu meditando essas e outras palavras do Evangelho de S. Matheus, cuja leitura me aconselhastes…
– E viu decerto voss'alteza, em todo esse quadro tão singelamente traçado pelo apostolo, quanto Jesus Christo aprecia e recommenda a misericordia…
– Vi. Nem careço de outro estimulo, para prestar todo o meu auxilio á santa instituição, que projectamos…
– Bemdito seja o Senhor, que vos inspira!..
– Sem duvida pensástes já na ordenança, que devem seguir os fieis, que em nome da caridade christã vamos congregar…
– Uni-los-ha um compromisso a que dei principio, e submetterei, depois de concluido, á censura e approvação de voss'alteza…
– Trazei-mo, sim. Muito folgarei de lê-lo, que, para o approvar, bastava ser traça vossa…
– Beijo as mãos de voss'alteza, minha Senhora e rainha, que tão grande mercê me fazeis…
A uma das portas da sala, onde D. Leonor conversava com fr. Miguel de Contreiras, appareceu Maria Thereza, a qual ia para retirar-se, mas a rainha, dando por ella, mandou-a entrar e despediu o seu confessor.
Com o donaire e o miudo pisar das andorinhas correu Maria Thereza para sua ama, foi ajoelhar junto d'ella, e disse-lhe no tom mais doce e affectuoso:
– Venho pedir a voss'alteza uma grande mercê…
– Muito grande, muito grande?.. Então dize lá!.. – volveu carinhosamente a rainha.
– Voss'alteza sabe quanto desejo estudar e comprehender as sciencias, e o cuidado que ponho em instruir-me… Ora, se eu fosse ouvir, durante algum tempo, as lições de meu tio, lente de Canones na Universidade… Mas… agradará porventura a voss'alteza, que me auzente do paço, ainda mesmo para tal fim?..
A rainha ficou surprehendida. Fitou Maria Thereza um momento, e disse-lhe para lhe fazer gosto, e vêr o fructo de tão singular lembrança:
– Tens a minha approvação. Eu mesma te levarei a Lisboa, depois das festas do casamento.
Maria Thereza beijou com o mais vivo reconhecimento as mãos da rainha; mas, não a satisfazendo inteiramente a resposta, insistiu:
– E se eu fosse já?..
– Que trigança é essa?..
– Perdôe-me voss'alteza!.. Preferia não assistir ás festas…
– Creança!.. Como alcançaste a minha licença, já está a pular-te o pé!.. Olha, que não é bom, ser-se impaciente…
– Se eu não agastasse a vossa'alteza!..
– O que me dirás tu, que possa enfadar-me?!..
– Não sei, como confessar a voss'alteza… tudo quanto penso e sinto… e, todavia, não devo occultar, a quem para mim é mais do que mãe, qualquer segredo da minha alma… Eu, minha Senhora…
Maria Thereza não poude concluir. Tapou com as mãos os olhos, e ainda mais os escondeu, inclinando a cabeça no regaço da rainha.
D. Leonor afagou-a, e, tomando logo um fingido ar de soberana, exclamou:
– Eya sus!.. Quero saber todos esses segredos!..
Maria Thereza ergueu a cabeça, retirou as mãos dos olhos, e baixando-os, respondeu:
– Amo Pero da Covilhan, minha Senhora!..
– Acceitaste por tanto os galanteios d'esse homem?!.. – perguntou a rainha, accentuando com grande admiração as suas palavras.
– Sim, minha Senhora – replicou Maria Thereza um pouco tranquillizada e parecendo-lhe, que tinha tirado de cima do coração um enorme pêso.
– Antes, porém, de o admittires… como teu servidor… não reparáste na differença de nascimentos, nem te occorreu, que nunca permittirei o teu casamento, com quem não possa fazer a tua felicidade?..
– O que trago sempre em lembrança, minha Senhora, é o dever, de não dar um passo, que não seja do real agrado de voss'alteza. O amor, que Pero da Covilhan me inspirou, não apaga do meu coração o que consagro a voss'alteza, como do coração da esposa nunca se apaga – creio – o amor da filha. Até este mais santifica e robustece o outro…
– Assim é; e muito me alegra, que d'esse modo penses. Mas em que fundas tu as tuas esperanças, de Pero da Covilhan se tornar digno do meu prásme?..
– Pero da Covilhan é já cavalleiro da casa d'el-rei, meu Senhor, e, se elle não fôra de bons costumes e manhas, não lhe teria sua alteza feito tantas honras e mercês, como até aqui. Dos seus serviços nas terras do Oriente, por onde anda, houve já tão boas novas, que sua alteza a miude os gaba, e não esconde o contentamento, que lhe causaram. Ora, quando elle voltar, tendo cumprido fielmente os mandados d'el-rei, meu Senhor, não lhe faltará o cuidado, que sua alteza sóe haver com aquelles que bem o servem…
– Sim, el-rei nunca se esquece de seus bons e leaes servidores – affirmou gravemente a rainha; e, como se o seu pensamento estivesse estillando as palavras, que docemente proferia, continuou: – pois bem… mandarei dizer a teu tio, que venha buscar-te… Comprehendo agora a razão, por que desejas fugir ás festas… e faço-te a vontade…
Esta bondosa condescendencia sensibilisou extremamente Maria Thereza, que, não podendo logo articular uma palavra, cobriu de beijos e lagrimas as mãos da rainha. Momentos depois, á luz do seu espirito scintillante, mediu a grandeza do sacrificio, que estava deliberada a fazer, o de se apartar embóra temporariamente d'aquella, a quem tanto amava, e exclamou com a firmeza caracteristica das intenções puras: